13/05/2015
Após comemorar centenário, Dr. Amilcar Rocha Coutinho avança para os 74 anos de casado com D. Maria e 75 de graduação em Medicina
O médico Amilcar Rocha Coutinho (CRM 284) comemorou o centenário de nascimento na última sexta-feira, 8 de maio, em festa familiar em Curitiba e com direito de brindar também outras datas históricas que se avizinham: o 74º aniversário de casamento e felicidade com D. Maria Rame Rocha Coutinho (“bodas de macieira”) e o 75º aniversário de graduação em Medicina pela Universidade Federal do Paraná. Seguindo as tradições de religiosidade e beneficência da família, foi organizada a celebração de missa em ação de graças e arrecadação de donativos, no lugar de presentes pessoais, para destinação a instituições de caridade. Entre os familiares que prestigiaram, estavam o genro, o neto e um sobrinho-neto, todos médicos com destacada atuação na Capital.
Às vésperas da reunião festiva única, o jornalista-editor das publicações do CRM-PR entrevistou o ilustre médico e sua mulher, para os quais a longevidade permite os muitos superlativos nos registros cronológicos e de comemorações. Um dos filhos, o empresário e advogado Marcos Rocha Coutinho, foi quem viabilizou o encontro na residência que o casal construiu há 64 anos no bairro Água Verde e onde mora até hoje. Nascido em 8 de maio de 1915 em Joinville (SC), o Dr. Amilcar está muito bem de saúde; anda com desenvoltura e sua lucidez é atestada pela privilegiada memória na narração de fatos e datas.
Recentemente, passou por uma cirurgia de catarata, por muito adiada, e por um check up. No último dia 6, feita a revisão também no dentista, não tinha dúvida de que estava muito bem preparado para enfrentar as novas emoções e também para retomar os cuidados com a horta e o jardim de casa, isto para angústia de D. Maria, 95 anos, sempre receosa de uma queda traiçoeira.
Origem
Amilcar tinha 11 anos de idade quando deixou a casa dos pais José e Hermínia Coutinho, em Joinville, para estudar o ginásio em Curitiba. Ficou na casa de parentes. Ingressou no curso de Medicina da UFPR em 1935 e, apesar de ganhar uma bolsa por seu desempenho, teve de fazer muitos “bicos” para custear suas despesas, como vender adubo orgânico para ser usado nos jardins do Castelo da Família Lupion, no Batel, ou agregar comissão com a venda de moedas no comércio. Com dinheiro curto, grande parte do tempo fora da sala de aula era dedicada a devorar livros na biblioteca da faculdade, muitos deles em idiomas que não o português e que exigia ajuda de alguns colegas. E foi nesse ambiente que ele se apaixonou pela então estudante de farmácia, Maria Rame, filha de libaneses com comércio na Praça Generoso Marques, centrão de Curitiba.
O namoro engrenou em 1939, ano em que Maria se formou. Ela pretendia continuar os estudos em Medicina, diante da oportunidade de ingressar no terceiro ano, mas cedeu ao argumento de Amilcar de que um médico na família já estava "bom demais". Amilcar se formou em 12 de dezembro de 1940, ao lado de 50 colegas ‑ cinco mulheres - e, apenas dois meses depois, indicado por um amigo do seu pai, aceitava o desafio de exercer a profissão no então recém-emancipado município de Caçador, no oeste catarinense. Doenças decorrentes das precárias condições de higiene, como paratifo, eram comuns, como também os casos de baleados nos enfrentamentos em ocupações de terras e desmates.
Depois de algumas poucas semanas, não só topou continuar na missão como convenceu a noiva a segui-lo após o casamento, que ocorreu em 31 de julho de 1941 (D. Maria não queria as bodas em agosto). Foram quase 10 anos no município catarinense, tempo suficiente para que o casal conquistasse grande prestígio entre os moradores por sua dedicação na atenção à saúde ‑ ele enquanto médico comunitário e ela, a primeira farmacêutica formada a atuar na região, dando especial ênfase aos produtos naturais. A casa de madeira que moravam era também ponto de referência para atendimento e “de espera do doutor”, que muitas vezes mal chegava de uma visita domiciliar e já era convocado para outro, muitas vezes na área rural, até escoltado por jagunços para socorrer vítimas de armas de fogo. “Tirei muita bala de gente”, diz. Contudo, um dos episódios mais marcantes para o médico naquela região foi ter ajudado a salvar uma criança de seis meses, dada como "desenganada" por outros médicos. Dr. Amilcar diz que foram quase três meses de vigília diária, mas que a criança, filha de prósperos madeireiros da região, sobreviveu e depois teve vida normal. A família, em gesto de gratidão, presenteou o casal Coutinho com valioso enxoval ao nascimento do primeiro filho ‑ Marcos ‑ em Curitiba.
Após o nascimento das filhas Marcia e Marcely, D. Maria decidiu que era chegada a hora de retornar a Curitiba para melhor acesso aos estudos pelas crianças, convencendo o marido que, contudo, quis assegurar antes a garantia de sobrevivência da família. Um emprego público levou-o a trabalhar na Secretaria de Saúde na Barão do Rio Branco com André de Barros, montando logo depois também consultório na Alameda Dr. Muricy com os colegas Aguilar Arantes e Guy Mourão.
Em 1951, já estava morando na casa construída em terreno doado pelo pai no Água Verde e de onde não mais saiu. A fama de grande clínico, aliada a suas atitudes de desapego “ao dinheiro” e de atender a todos, de forma indistinta e em qualquer horário, fez do seu endereço roteiro certo para inúmeras famílias em busca de atendimento. Consolidou-se ali como verdadeiro médico da comunidade. Para quem pouco ou nada cobrava, muitas vezes a retribuição chegava nos festejos de fim de ano, quando enchia a sala principal da residência com os presentes, que incluíam guloseimas artesanais a generosas cestas natalinas.
Atividade intensa
No exercício da Medicina, Dr. Amilcar passou por alguns consultórios em locais do Centro de Curitiba e também atuou nos hospitais São Vicente e Instituto de Medicina e Cirurgia, além do Leprosário São Roque, em Piraquara, que depois foi transformado no Hospital de Dermatologia Sanitária. Ex-jogador de futebol amador pelo Savóia, no qual foi campeão da suburbana em 1932, ao lado do primo Orestes Thá, o Dr. Amilcar sempre foi um aficionado desse esporte; chegou a montar times e competições entre os pacientes do hospital-colônia para elevar a autoestima e incentivar o movimento de reintegração das pessoas atingidas pela hanseníase, na época segregadas por força de legislação federal.
A paixão dupla por Medicina e futebol levou-o a aperfeiçoar e dedicar à medicina desportiva, sendo um dos precursores na capital paranaense e atuando pelos principais clubes da época. Foram 26 anos neste campo de atuação, tendo sido campeão em 1953 pelo Clube Atlético Ferroviário, o “Boca Negra”. Também foi médico da seleção paranaense de futebol, do Colorado e do Água Verde, no qual iniciou, levado pelo primo Orestes Thá, que hoje empresta o nome à sede social do Paraná Clube. Foram cinco anos de dedicação sem receber honorários.
Na década de 70, colocou-se à disposição do médico Lidio Toledo para auxiliar na seleção brasileira, mas as múltiplas atividades não deixaram o projeto prosperar, ainda mais que o Dr. Amilcar já era “cobrado” pela esposa face às muitas viagens e períodos de concentração dos clubes onde trabalhava. Músico autodidata, mas com rara habilidade com gaita de boca, violão, cavaquinho e violino, o Dr. Amilcar gostava de entreter os atletas na concentração e isto fazia muitas vezes com que “esquecesse da hora”.
Dr. Amilcar continuou no exercício da atividade médica até meados de 2008, aos 93 anos, quando desativou de vez o consultório. Ainda no período de graduação, o Dr. Amilcar sonhava ser médico da Marinha, mas a constituição de família e a possibilidade de dar atenção às pessoas carentes fizeram com que não se arrependesse de ter abandonado aquele projeto. Hoje, olhando para uma trajetória de quase 75 anos de profissão, lamenta não ter realizado outro sonho: construir um hospital. Ele próprio fez a planta e até tinha nome para o hospital: Hermínia Rolim Lupion, em homenagem à ex-primeira dama do Paraná, pessoa de grande consciência social e que promoveu inúmeras campanhas contra doenças. A mulher de Moysés Lupion, que também nasceu em 8 de maio (de 1911), empresta nome a vários logradouros públicos, incluindo a Casa do Estudante Universitário.
O Dr. Amilcar diz que não se sente frustrado pelo projeto “ter ficado pelo caminho” porque entende ter cumprido plenamente a sua missão hipocrática. “Além de ter olho clínico, foi um médico que se destacou pelo amor à profissão, sem nunca ter negado atendimento, em qualquer horário e sem nenhum tipo de preconceito. Sempre mostrou absoluto desapego a dinheiro”. O testemunho é da esposa Maria Rocha Coutinho, para reforçar que a ideia do hospital sucumbiu a outras prioridades, inclusive a da família, que é o grande orgulho do casal. A tristeza fica por conta da perda da filha Marcely, no final de 2011, aos 58 anos, e do genro, Lino Moroso, em 2014. Outra perda sentida foi a da babá dos filhos, que ficou 63 anos com a família, os últimos adoentada, mas bem assistida em gratidão. Faleceu aos 89 anos.
Médicos na família
O casal Amilcar e Maria tem sete netos e quatro bisnetos. Um dos netos é o médico Alexandre Coutinho Teixeira de Freitas, especialista em cirurgia geral e cirurgia do aparelho digestivo. Ele é filho de Marcia e do também médico e professor Luiz Renato Teixeira de Freitas, especialista em gastroenterologia e endoscopia digestiva e que, em 2014, recebeu do CRM-PR o Diploma de Mérito Ético-Profissional pelo Jubileu de Ouro. Na família, de diversificados campos de atuação, tem ainda outro médico, o pediatra Vicente Lúcio Viana Lopes, que também em 2014 recebeu o Diploma de Mérito Ético. Ele é sobrinho-neto do Dr. Amilcar.
Receita da longevidade
Descendente de italianos e portugueses, o Dr. Amilcar tem como segredo da longevidade a vida de hábitos saudáveis e a felicidade com a família. Ele chegou a fumar na juventude, algo comum para a época, mas logo deixou sob a advertência da então noiva de que não se casaria se mantivesse o “vício”. Embora goste de tomar um vinho socialmente, o fato é que nunca bebida alcoólica foi à mesa em sua casa, como conta o filho Marcos, que vê os exemplos positivos por nunca ter bebido ou fumado e sempre ter sido adepto de atividades esportivas.
Marcos reforça: “Comer sempre nas horas certas, dormir cedo e fazer exercícios físicos fazem parte da receita. Depois de deixar o convívio do meio esportivo, ele (Dr. Amilcar) dedicou-se à jardinagem da casa, fazendo adubo natural com restos de comida e cascas de verduras e frutas e usando em sua horta. Nunca usou produtos tóxicos em sua plantação. Os pés de tomate precisam até de escoras e as folhas de espinafre eram muito grandes; os rabanetes rachavam de tão grandes. Até hoje pegamos legumes e verduras.”
Os almoços em família são constantes e o médico tem especial preferência pela gastronomia de Santa Felicidade. No passado, os jantares já foram mais frequentes, como da turma de formandos em Medicina de 1940. Tinha encontros mensais e um anual, para marcar a grande confraternização do grupo, que envolvia a tradicional missa na Igreja do Rosário. O Dr. Amaury Luciano de Munhoz Rocha, também escritor, era o principal líder da confraria, que gradativamente foi perdendo seus componentes. Quando exalta colegas de turma, pela amizade e brilhantismo na profissão, o Dr. Amilcar não deixa de elogiar também os seus grandes mestres, tendo especial distinção pelo Prof. João Cândido Ferreira, o qual sustentou com o primo Victor Ferreira do Amaral a primeira universidade do Paraná. Tem boas lembranças também dos professores Mario Braga de Abreu, Dante Romanó, Atlântido Borba Cortês, Waldemar Monastier e Ruy Noronha de Miranda, com quem trabalhou no Leprosário São Roque.
Para quem acompanhou de perto a Copa do Mundo de Futebol em 1950, já que o Estádio Durival de Brito e Silva do Ferroviário abrigou jogos, o Dr. Amilcar tinha em seus planos estar vivo pelo menos até a Copa de 2014, de novo no Brasil. Superado o tempo, agora ele brinca bem humorado que a nova meta é acompanhar a de 2018 e, quem sabe, a volta do Paraná Clube à primeira divisão. Por sua ligação com a história do clube, a família inteira torce para o tricolor. Ele, pela comodidade e segurança, há bom tempo deixou de ir ao “campo”.
Encerrando a entrevista, a esta altura com a presença do genro médico Luiz Renato, em sua visita diária, o Dr. Amilcar faz questão de mostrar a maleta médica, companheira de tantos e tantos anos. Tudo bem ordenado, incluindo o bloquinho de receituário e o estetoscópio. Afinal, não raro aparece algum amigo ou vizinho buscando orientação médica. Marcos conta que foi salvo pelo menos “meia dúzia de vezes” pelo pai; D. Maria realça que sempre teve privilegiada atenção do marido, mas faz questão de dizer que nunca tomou medicamento, preferindo produtos naturais.