08/04/2018

Uma história real de amor genuíno

Fábio Silveira

Dentre as diversas características da ação médica, a comunicação de más notícias talvez seja a de mais difícil realização e de constante aperfeiçoamento.

Qual conduta devemos adotar quando presenciamos um ato de amor genuíno e desprendimento em benefício de desconhecidos? Acredito que uma delas é escrever sobre isso. As palavras são capazes de materializar nossas vivências, ficar para a posteridade.

A doação de órgãos para transplante é um grande ato de solidariedade e amor ao próximo; doa-se a alguém desconhecido, sem troca material, sem expectativa de retorno.

Um quadro de falência aguda do fígado é um quadro dramático, de início súbito, rápido e de mortalidade altíssima. Um insulto às células do fígado resulta na sua destruição maciça, desequilibrando nosso organismo, desencadeando uma cascata de eventos de deficiência na coagulação do sangue, inchaço do cérebro e, finalmente, a morte.

A juventude é um momento ímpar da vida; o jovem cheio de esperanças, os pais com a recente experiência mágica da infância frente às preocupações da fase de transição para a vida adulta. Eis que um moço de 15 anos apresenta um amarelão (icterícia) nos olhos, mal-estar e alterações laboratoriais graves. A família deixa sua residência no interior e vai buscar recursos na cidade grande. Temor, ansiedade, o medo do desconhecido e da doença. Coincide com a chegada ao hospital o desencadear da cascata de eventos, confusão mental, necessidade de ventilação mecânica.

A equipe do centro cirúrgico, na expectativa da vida, se vê frente à morte

Exames e mais exames, unidade de terapia intensiva e, em poucas horas, o diagnóstico: falência do fígado, alta gravidade. Única possibilidade: um transplante. O desespero da família é evidente frente ao diagnóstico e, mais, frente à impotência da medicina em estabelecer uma causa. Obviamente vem à cabeça da mãe: “o que eu fiz de errado?”

Nessas horas, na cabeça do médico, surgem as palavras de Mário Quintana: “que a morte chegou na sua antiga locomotiva, ela sempre chega pontualmente na hora incerta”. Mas, como é inerente à sua missão, a medicina vai enfrentar o desafio: medidas de controle do inchaço cerebral, remédios para evitar infecção, transfusão de derivados do sangue para controlar a hemorragia. E a derradeira esperança, um transplante.

Aciona-se a Central de Transplantes, paciente em lista de espera, gravidade alta, legislação que prioriza quadros graves em pacientes jovens. Surge um órgão, aciona-se a equipe de captação e, na cirurgia de extração dos órgãos, vem a decepção: órgão doente, inadequado para transplante.

Esperanças claramente abaladas, a mensagem para a família é de força, a batalha ainda não estava perdida. Enfermagem, fisioterapia, nutricionistas, médicos, capelania, psicologia, todos focados na tentativa de manutenção da vida e no suporte da família.

O tempo não para e a certeza de que cada vez menos horas estão disponíveis para o garoto. Eis que surge mais uma doação no interior do estado. Logística organizada, equipe mobilizada, deslocamento aéreo, o tempo urge. Avaliações seriadas demonstram que a esperança ainda existe, intervenções médicas conseguem manter a estabilidade hemodinâmica e controle do inchaço cerebral.

Horas se passam e elas levam o sono. Eis que a esperança ressurge: o órgão é adequado para transplante, cirurgia agendada para o momento da chegada do órgão ao hospital. Quando o órgão chega ao hospital e o adolescente vai ao centro cirúrgico, a avaliação clínica indica pupilas dilatadas e ausência de estímulo elétrico cerebral – ou seja, chegamos tarde demais. A equipe do centro cirúrgico, na expectativa da vida, se vê frente à morte. O abatimento é evidente, vários não seguram as lágrimas. Temos um órgão viável para transplante, ali, na sala cirúrgica, mas que para aquele paciente não é mais uma realidade.

Novamente se aciona a Central de Transplantes; outros pacientes estão entre a vida e a morte. O órgão não pode ficar acondicionado na solução de preservação por muitas horas. Logística acionada, de maneira ágil o órgão é distribuído para o próximo paciente na lista de espera, localizado em outra instituição hospitalar. A esperança de vida ressurge para outro indivíduo.

No ínterim, encaminha-se o paciente para o exame capaz de selar o diagnóstico da morte encefálica, o cateterismo cerebral. O exame confirma a ausência de fluxo sanguíneo no encéfalo. A morte, em sua locomotiva, havia chegado para o garoto.

Dentre as diversas características da ação médica, a comunicação de más notícias talvez seja a de mais difícil realização e de constante aperfeiçoamento. É quando os atos técnicos médicos perdem importância; a empatia e as técnicas de linguagem devem ser preponderantes. Ao adentrar na sala de espera do hospital e comunicar o ocorrido, vivenciamos em sua plenitude a esperança trocada pelo desespero: a família recebe a pior das notícias.

Nessa tempestade de emoções desencadeada pela morte, presenciamos o ato de genuíno amor e desprendimento descrito no início. Frente ao diagnóstico do filho em morte encefálica, posteriormente a mãe autoriza a doação de seus órgãos ainda viáveis. A esperança ressurge para algum desconhecido. Frente a uma imensurável dor, essa mãe distribuiu o amor.

Fábio Silveira é cirurgião de transplantes do Instituto para Cuidado do Fígado e Hospital do Rocio (Campo Largo-PR).

* Artigo publicado no Portal da Gazeta do Povo em 01/04/2018.
**As opiniões emitidas nos artigos desta seção são de inteira responsabilidade de seus autores e não expressam, necessariamente, o entendimento do CRM-PR.

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