Em sua coluna semanal publicada em 18 de novembro na Revista Época, a jornalista Cristiane Segatto questiona: "até
a presidente Dilma parece insatisfeita com o atendimento pífio que o Brasil dá aos dependentes de álcool e drogas. Por que
insistir no fracasso?" Veja a íntegra do artigo de opinião da repórter, que escreve sobre medicina há 15 anos, ganhou mais
de 10 prêmios nacionais de jornalismo e faz parte da equipe de ÉPOCA desde o lançamento da revista, em 1998.
Afirmar isso ou aquilo sobre o comportamento e a personalidade da presidente Dilma é arriscado. Até os iniciados no mundo
da política (o que não é, absolutamente, o meu caso) sofrem para detectar quais são os traços autênticos de Dilma. Dizem que
ela é austera. Dizem que tem pavio curto. Dizem que não economiza nas broncas.
Uma amostra das descomposturas que a presidente estaria passando nos ministros e nos colaboradores foi relatada pela jornalista
Vera Magalhães na interessante reportagem publicada no domingo (13/11) pelo jornal Folha de S. Paulo. O que mais chamou minha
atenção foi o seguinte trecho:
"A presidente comandava uma reunião com representantes de vários ministérios para discutir o lançamento de uma política
de saúde para pessoas com deficiências. Quando um funcionário do Ministério da Saúde sugeriu uma sigla para identificar a
nova política, Dilma cortou:
- O quê? Você está me sugerindo mais uma sigla? Você sabe quantas siglas tem no Ministério da Saúde? - e se pôs a enumerar
várias delas. Ao citar os CAPs-AD (Centros de Atenção Psicossocial Antidrogas), voltou-se para um ministro ao seu lado:
- Você sabia que os CAPs-AD fecham às 18h? Você chega para o drogado e fala: "Drogado, são 18h. Tchau, drogado, volta
amanhã!"
Finalmente alguém no governo federal parece ter percebido o absurdo que é a estrutura de atendimento aos dependentes de
álcool e drogas no Brasil. Eles e suas famílias não são os únicos afetados. Toda a sociedade sofre. A política de saúde mental
do Ministério da Saúde tem sérios problemas. O principal é estar baseada muito mais em ideologia e preconceito do que em medicina.
Se quem percebeu que o serviço está mal feito foi justamente quem manda na casa, a notícia é ótima. Pode ser um sinal
de que as coisas finalmente podem começar a mudar. Para melhor.
Quem tem na família um dependente químico (de drogas ou álcool) ou um doente com depressão, transtorno bipolar, esquizofrenia,
transtorno obsessivo-compulsivo e outros problemas psiquiátricos sabe que essa estrutura de atendimento baseada nos CAPS não
dá conta do problema. Por mais bem intencionados que os defensores desse modelo sejam.
A história é antiga. No final dos anos 80 ganhou força no Brasil um movimento chamado de luta antimanicomial ou de reforma
psiquiátrica. Pregava a extinção dos manicômios, nos quais os pacientes eram abandonados, maltratados e submetidos a situações
degradantes.
Ninguém pretende que esses horríveis depósitos de gente renasçam no Brasil. Mas é preciso reconhecer que dependentes de
álcool e drogas e doentes psiquiátricos em estado grave podem precisar de internação. Os doentes (independentemente de sua
condição social) merecem uma internação em hospital adequado, com atendimento psiquiátrico eficaz e a dignidade que todo sofredor
merece.
As famílias dos pacientes enfrentam hoje uma enorme dificuldade para internar quem precisa. O poeta Ferreira Gullar, que
teve dois filhos esquizofrênicos, denunciou a situação numa reportagem que foi capa de ÉPOCA.
Desde 1989, cerca de 70% dos leitos psiquiátricos do país foram fechados. O Ministério da Saúde investiu nos Centros de
Atenção Psicossocial (CAPS). Nesses locais, o paciente recebe medicação e acompanhamento semanal. A ideia é atendê-lo sem
retirá-lo do convívio da família e da comunidade. Quando a situação do paciente complica, no entanto, os familiares não conseguem
vaga num leito psiquiátrico em hospitais comuns.
Vários municípios discutem a internação compulsória de dependentes de crack, uma polêmica muito bem retratada pelos colegas
Mariana Sanches, Matheus Paggi e Eduardo Zanelato em reportagem de capa da revista. A pergunta que não quer calar é "internar
onde?"
Em meio a uma verdadeira epidemia de crack, o Brasil dispõe de apenas 268 centros de atendimento de casos de álcool e
drogas (CAPS-Ad). Eles funcionam apenas até as 18 horas. Só de segunda a sexta-feira.
O país inteiro tem apenas três (!!!) centros 24 horas, segundo o Ministério da Saúde. Um em Petrópolis (RJ) e dois em
São Bernardo do Campo (SP). Pelo sistema de atendimento vigente no Brasil é preciso surtar em horário comercial. Não sei se
a bronca de Dilma foi dirigida à pessoa certa, mas foi merecida.
O mais estranho nessa história toda é que o Ministério da Saúde parece não estar interessado em ouvir os psiquiatras.
Procurei vários deles, a maioria especialista no tratamento de dependentes de álcool e drogas, para saber como receberam o
comentário da presidente.
"A Dilma é muito inteligente. Se o problema chega até a presidente, ela consegue dar resolução", afirma Antônio Geraldo
da Silva, presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria. "O problema é que ela está muito mal assessorada na área de
saúde mental. Nos colocamos à disposição do Ministério da Saúde para ajudar a repensar o sistema e não fomos ouvidos", diz.
CAPS são úteis, mas não podem ser o único recurso disponível. Sozinhos, esses centros não têm competência para prestar
assistência adequada aos doentes. Fechar leitos psiquiátricos e abrir mais CAPS não resolve o problema. Sem nenhum demérito
às equipes multiprofissionais que trabalham neles, esses centros deveriam ser recursos complementares. Por que o governo insiste
no erro?
"Por um infantil viés ideológico, quem defende o modelo atual acredita que as dependências químicas são uma construção
social e os dependentes são vítimas da injustiça social", diz Marco Antonio Bessa, ex-presidente da Sociedade Paranaense de
Psiquiatra.
Na prática, a atual orientação da política de saúde mental brasileira sataniza a psiquiatria. Parte do pressuposto de
que todos os psiquiatras estão mancomunados com a indústria farmacêutica e nega os avanços que essa área da medicina trouxe
para a compreensão e tratamento de tantos males e aflições.
É claro que existem maus profissionais na psiquiatra -- como em qualquer outra área do conhecimento e do mercado de trabalho.
É claro que a indústria tem interesses comerciais e seduz os médicos, a imprensa e o público. É claro que há exagero no diagnóstico
e na medicação de "doenças" que, muitas vezes, são apenas a expressão de comportamentos fora do padrão esperado pela sociedade.
Tudo isso existe e é grave.
O problema é o radicalismo. Negar os benefícios que a psiquiatria trouxe nas últimas décadas é tão grave quanto medicar
e internar quem não precisa.
Diante da crise aberta pela dependência de drogas, o governo e a sociedade precisam ouvir os psiquiatras - mesmo que seja
para discordar deles.
"Às vezes fico pensando que em breve as internações em UTIs, os choques para ressuscitação e as radioterapias também serão
vistos como ações arbitrárias e violentas dos médicos - esses lacaios do biopoder a serviço da opressão e da exploração da
humanidade", diz Bessa.
O professor Ronaldo Laranjeira, da Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp),
acha que a presidente precisa se informar melhor. "Se ela soubesse da missa a metade, ficaria ainda mais preocupada", diz.
"Até hoje o Ministério da Saúde não tem uma política assistencial em relação ao tratamento do crack. Nem mesmo para o alcoolismo
existe um mínimo de padronização do que se deveria fazer".
Segundo Laranjeira, os CAPS-Ad são caros e ineficientes. Cada centro custa, em média, R$ 200 mil. "Nunca conheci um CAPS
que faça mais de mil atendimentos por mês. Portanto, cada consulta custa ao redor de R$ 200. A adesão ao tratamento é muito
baixa e a eficácia do tratamento é absurda", afirma.
Não se tem notícia de que algum dia o Ministério da Saúde tenha realizado uma avaliação de custo-benefício nesses locais.
"Se fizesse, 90% deles teriam de ser fechados".
Há quem acredite que na gestão Dilma a política vigente sobre drogas finalmente começa a ser questionada. Essa é a opinião
de Analice Gigliotti, vice-presidente da Associação Psiquiátrica do Estado do Rio de Janeiro. "O comentário da presidente
é absolutamente pertinente. Um dependente de drogas não escolhe a hora de querer se tratar. Não escolhe a hora de precisar
de tratamento. Se pudesse escolher, não seria um dependente de drogas".
Em vez de promover a abstinência de drogas, o objetivo dos CAPS-Ad é reduzir o consumo. É a ideia da redução de danos.
"Isso é inadequado porque são muito poucos os dependentes que conseguem reduzir o uso. Eles voltam a usar drogas na mesma
quantidade que usavam antes. Basta ver o que acontece com os fumantes que tentam reduzir a quantidade de cigarros. Não funciona",
diz Analice.
Durante três dias, tentei entrevistar um representante do Ministério da Saúde. Ninguém me atendeu. O governo sabe que
a coisa vai mal. É bom saber que a presidenta também tomou consciência disso. Talvez esse seja o momento de reformar o que
precisa ser reformado. Estou convencida de que não é a psiquiatria.
Fonte:
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Época