07/07/2006
Será mesmo o fim da homeopatia?
Pelo espaço ímpar que a Revista Diagnóstico & Tratamento tem proporcionado à publicação de artigos sobre homeopatia e acupuntura,
venho através desta carta discorrer sobre alguns artigos publicados recentemente no periódico The Lancet, que questionam a
eficácia clínica da homeopatia.
A título de esclarecimento, importa citar que a homeopatia, em seu contexto epistemológico, se fundamenta em princípios
distintos da medicina convencional: aplicação do princípio de cura pela similitude, empregando doses infinitesimais de substâncias
que, ao terem sido experimentadas previamente em pessoas sadias, apresentaram sintomas semelhantes aos do indivíduo doente.
Na aplicação terapêutica desses pressupostos, valoriza a individualidade humana, elegendo, dentre os milhares de substâncias
experimentadas, aquela que englobe a "totalidade de sintomas característicos de cada paciente" (nos aspectos psíquicos, emocionais,
gerais e clínicos), empregando, para um mesmo tipo de doença, medicamentos distintos para cada indivíduo enfermo.
Trabalhos desenvolvidos nas últimas décadas nas áreas da pesquisa básica e da pesquisa clínica têm procurado fundamentar
cientificamente os pressupostos e a prática clínica homeopática1 e, apesar do princípio de cura homeopático pela similitude
(paradoxical strategy for treating chronic diseases) vir despertando interesses e debates crescentes na racionalidade médica
contemporânea, causa estranheza ao pensamento cartesiano o fato de as ultradiluições homeopáticas (em concentrações inferiores
ao número de Avogadro) produzirem sintomas em organismos vivos, fazendo com que se comparem os efeitos "inexplicáveis" ou
"implausíveis" do tratamento homeopático ao "efeito placebo".
Alegando o intuito explícito de estudar a relação dos efeitos clínicos do tratamento homeopático com o efeito placebo,
acaba de ser publicado no The Lancet um estudo comparativo entre ensaios clínicos homeopáticos e alopáticos placebocontrolados.
Pareando 110 ensaios homeopáticos com 110 ensaios alopáticos, segundo as mesmas doenças e os mesmos tipos de resultados
(efeitos específicos), os autores classificaram os estudos segundo critérios de qualidade metodológica clássicos (número de
participantes envolvidos, método de randomização, aplicação do método duplocego, tipo de publicação,
cálculo do odds ratio etc.), utilizando a metaregressão como método de análise estatística, avaliando como os vícios ou
erros sistemáticos (vieses) na condução e na descrição dos estudos poderiam interferir na interpretação final dos resultados.
Numa primeira análise geral de todos os ensaios clínicos levantados, a maioria de baixa qualidade metodológica segundo
os critérios anteriormente citados, os autores observaram que tanto a homeopatia como a alopatia mostraram se efetivas perante
o placebo. Entretanto, quando os erros sistemáticos foram valorizados, selecionando para análise apenas os "estudos de maior
qualidade metodológica clássica", segundo o critério de número de participantes envolvidos (oito ensaios clínicos homeopáticos
versus seis ensaios clínicos convencionais), os resultados mostraram fraca evidência para um efeito específico dos medicamentos
homeopáticos (odds ratio, OR = 0,88; 95% intervalo de confiança, CI = 0,651,19) e forte evidência para efeitos específicos
de intervenções convencionais (OR = 0,58; 95% CI = 0,390,85).
Partindo da premissa que os efeitos específicos das ultradiluições homeopáticas são "implausíveis", pela dificuldade de
explicálos segundo os parâmetros da pesquisa farmacológica dosedependente, os autores e comentaristas do trabalho concluíram
que os efeitos clínicos da homeopatia são efeitos placebo: "We question the results of a randomised trial of homoeopathy because
we know that pharmacological action of infinite dilutions is highly implausible. This reasoning is also the explicit starting
point of Shang and colleagues and their analyses only gain meaning because of that background".
Como rege a epidemiologia clínica, nos estudos que visam comparar a eficácia de racionalidades médicas distintas como
a homeopatia e a alopatia, os critérios de qualidade metodológica específicos a cada modelo devem constar como premissas fundamentais
na sua descrição e condução, a fim de que se reproduza, na pesquisa, a realidade clínica. Dessa forma, os ensaios clínicos
homeopáticos deveriam priorizar como "critérios de alta qualidade metodológica" as seguintes premissas: individualização na
escolha do medicamento (segundo a totalidade de sintomas característicos), das doses e das potências homeopáticas; período
de acompanhamento suficiente para ajustar o medicamento à complexidade da individualidade enferma; avaliação da resposta global
e dinâmica ao tratamento com a aplicação de questionários de qualidade de vida (e não apenas o desaparecimento momentâneo
de um ou outro sintoma) etc.
Na metanálise recémpublicada, esses "critérios homeopáticos de alta qualidade metodológica" não foram valorizados, pois
apenas 16% dos ensaios clínicos homeopáticos selecionados inicialmente (e nenhum dos oito estudos de melhor qualidade metodológica
clássica) respeitavam e "individualização na escolha do medicamento", constituindo um viés ou erro sistemático de grande magnitude
para o modelo homeopático. A grande maioria dos ensaios clínicos homeopáticos selecionados apresentava desenhos impróprios
à "clínica da individualidade", empregando um mesmo medicamento (44%) ou uma mesma mistura de medicamentos (32%) para uma
queixa clínica comum a todos os pacientes.
Buscando descaracterizar a premissa da individualização do medicamento (que requer estudos clínicos com longo tempo de
acompanhamento dos pacientes), reiterada como "padrão ouro" ou "estadodaarte" da epidemiologia clínica homeopática em revisão
sistemática sobre o tema, os autores da recente metanálise admitem que "avaliaram esses pontos com análise adicional dos dados
e não encontraram forte evidência que confirmasse essas hipóteses":* "não encontraram forte evidência" é diferente de "havia
uma fraca evidência"**, citado na conclusão final.
Tudo indica que esse artigo, enviesado segundo as premissas do modelo homeopático, assim como o editorial (The end of
homoeopathy11) e outras duas matérias críticas publicadas na mesma edição do The Lancet7,12, apresentam o intuito implícito
de desacreditar a homeopatia cientificamente, em vista de a Organização Mundial de Saúde (OMS) estar em vias de publicar um
dossiê completo sobre os trabalhos de pesquisa em homeopatia desenvolvidos nas últimas décadas, que conclui favoravelmente
em prol da homeopatia.
O interesse da população pela homeopatia vem crescendo em todo o mundo, despertando as mais variadas reações na classe
médica, que espera respostas de pesquisadores imparciais aos diversos questionamentos que permeiam essa prática médica bissecular.
Considerando os pressupostos fundamentais a cada modelo, devemos exercitar a criatividade na busca de modelos de pesquisa
clínica que reconciliem o paradigma científico dominante com o paradigma científico homeopático, suplantando a cristalização
dogmática que limita os horizontes do conhecimento humano ("A razoabilidade da entrada de um dado depende de quanto ele seja
apoiado pelo fato em questão e pelo conhecimento existente"***).
Podemos dizer que a predição apocalíptica do editorial do The Lancet (The end of homoeopathy11), segundo as mesmas palavras
dos editores, relacionase ao fato de que "we see things not as they are, but as we are".