17/01/2016
Editorial O Estado de S. Paulo
A incapacidade de atrair médicos é um aspecto da maior importância - mas nem sempre devidamente ressaltado
- da grave crise por que passa a saúde pública, que se reflete tanto na demora na marcação de
consulta, exames e cirurgias como no tempo de atendimento dedicado aos pacientes. E a situação só tende
a piorar, pelo menos a curto prazo, a julgar pelo que mostra reportagem do jornal O Globo: são elevadas as porcentagens
de médicos que, apesar de penarem para ser aprovados em concursos promovidos por governos municipais e estaduais, depois
desistem de assumir os cargos.
A capital paulista apresenta o maior índice de desistência: de 1.275 médicos
chamados, 809, ou 63,5%, recusaram os postos aos quais tinham direito. Essa situação se repete em outras capitais
importantes: Belo Horizonte, com índice praticamente idêntico (63,3%), Porto Alegre e Rio de Janeiro, com números
um pouco inferiores, mas que ainda assim representam mais da metade dos aprovados (58,8% e 55,3% respectivamente). No Distrito
Federal, a desistência é também alta - 58,4%.
Entre os profissionais, dos mais variados tipos, sobre os quais o emprego público exerce grande atração, os médicos aparecem, portanto, como uma exceção. As razões apontadas por especialistas para isso começam com o salário. Ao contrário do que acontece com a maior parte das outras profissões que exigem alta qualificação, o salário dos médicos deixa muito a desejar. Na capital paulista, por exemplo, ele é de R$ 6 mil por 20 horas semanais e no Distrito Federal, de R$ 7 mil.
As outras razões para a desilusão dos médicos são a falta de planos de carreira, precárias condições de trabalho, insegurança e demora na convocação após a aprovação nos concursos. Sobre esse último ponto, Gonzalo Vecina Neto, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP e com experiência no exercício de importantes cargos na administração pública, lembra com razão que "quem presta concurso quer começar a trabalhar logo. Não quer esperar seis meses, um ano". O grave nesse caso é que o problema é provocado por entraves burocráticos, que em princípio são fáceis de ser removidos, desde que haja firme determinação.
Quanto aos outros pontos, a situação é mais complicada. Segundo o presidente do Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp), Bráulio Luna Filho, a origem da crise da saúde pública - na qual o caso dos médicos tem posição de destaque - está no seu financiamento: "O setor público investe cerca de 2,5% do PIB para atender 160 milhões de pessoas, enquanto o privado investe 7,5% para atender 50 milhões de pessoas. Tem alguma coisa errada nisso".
O erro, que se acentuou nos governos do PT, apesar de sua alardeada fidelidade ao "social", foi o descaso com o Sistema Único de Saúde (SUS) e a rede hospitalar que o serve - que perdeu milhares de leitos -, na ilusão de que o aumento dos participantes dos planos de saúde aliviaria a sua carga. Um desastre que se refletiu, como não poderia deixar de ser, nos sistemas municipais e estaduais de saúde e afetou a remuneração dos profissionais da área. Corrigir esse erro será tarefa difícil e demorada, mas essencial para evitar o colapso da saúde pública.
Se o governo federal tivesse dado a esse problema a mesma atenção que deu, por claras razões políticas, ao programa Mais Médicos, a situação não teria chegado ao ponto a que chegou. Com recursos mais abundantes, ele vem atraindo agora cada vez mais médicos brasileiros que, além da remuneração mensal de R$ 10 mil, recebem incentivos como 10% de bônus nas provas de residência, desde que se mantenham por um ano em seus postos.
Outro problema que tem grande peso na desistência dos cargos públicos - esse de responsabilidade dos governos estaduais - é a falta de segurança que assusta os médicos que trabalham nas periferias das grandes cidades.
Voltar a atrair os médicos para a saúde pública depende, portanto, de um esforço conjunto dos três níveis de governo.
Editorial publicado no jornal O Estado de São Paulo em 18/01/2016
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