10/01/2016

Saúde e educação médica

Irene Abramovich, Nosor Oliveira Filho, Olímpio Bittar

Na Carta Constitucional de 1988, foi promulgado que a "saúde é direito de todos e dever do Estado". A garantia deste direito a todos os cidadãos foi a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), tendo como base o acesso universal, a regionalização, a hierarquização e a equidade. A adequação da formação dos profissionais, além de garantias de financiamento, é fundamental para viabilizar o sistema de saúde com estas características.

O exemplo que inspirou o SUS é o modelo inglês. Berço do capitalismo, a Inglaterra, mesmo após reformas pós-neoliberalismo na chamada era Thatcher, mantém seu sistema público de saúde com gastos superiores a 80% de tudo o que é gasto na área. A principal forma de acesso ao sistema inglês é o General Practitioner (GP), médico geral, base do sistema. Cada cidadão tem o seu GP que orienta todos os seus cuidados e o encaminha a níveis de maior complexidade, se necessário. Para manter tal estrutura em funcionamento, a formação médica na Inglaterra, dá ênfase à formação do generalista, sem negligenciar a formação de especialistas.

A lógica da formação médica e especialização deveria estar adaptada à necessidade dos usuários do SUS

No Brasil, a formação médica manteve-se em sua forma tradicional, sem a menor preocupação em adequar esta formação ao sistema preconizado pela Constituição e normalizado por legislação complementar. Os egressos dos cursos médicos, ao longo destes anos, continuam em busca de especialidades pouco relacionadas à atenção básica. Esta realidade é comprovada por meio da relação candidato/vaga nos concursos para residência médica, forma tradicional e internacionalmente reconhecida de especialização. Enquanto esta relação é alta na coluna um, é baixa na coluna dois, em áreas importantes para a atenção básica, bem como na coluna três, em especialidades onde a incidência e prevalência de doenças são elevadas.

A fonte destes dados, que não se alteraram nos últimos anos, é do Concurso de Seleção Pública de Residência Médica do SUS/SP, patrocinado pela Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo (SES/SP). Sendo o maior concurso do país, em número de inscritos e de vagas ofertadas, com 13.009 candidatos para o concurso de 2016 (para 1.224 vagas no primeiro ano, o que resulta em 10,6 C/V), formados em praticamente todas as escolas brasileiras (outra contribuição de São Paulo para outros Estados), revela no perfil desta demanda o quanto a formação continua distanciada da necessidade do sistema de saúde brasileiro.

A SES/SP financia 6.230 bolsas, a um custo de R$ 243 milhões anuais. São distribuídas em 53 programas com duração mínima de dois e máxima de até cinco anos, contemplando as especialidades médicas reconhecidas oficialmente. Abrange as universidades públicas, hospitais próprios do Estado, universidades, faculdades de medicina e hospitais privados. Embora o órgão que credencia as instituições seja a Comissão Nacional de Residência Médica (CNRM), do Ministério da Educação e Cultura (MEC), o Estado, nem sempre consultado sobre suas necessidades, tem desenvolvido uma política de estímulo e distribuição de bolsas em áreas prioritárias ao SUS/SP, o que cabe dentro de um Estado Federativo.

Seria mais apropriado que após quatro décadas da regulamentação da residência médica e 27 anos da criação do SUS, a lógica da formação médica e da especialização já estivesse adaptada à necessidade de atenção dos usuários do SUS, respeitado o perfil epidemiológico da população de cada região. É imperioso o diálogo entre gestores do SUS e formadores de profissionais da área.

Não é foco analisar as causas deste descompasso (formação x necessidade), mas as consequências crescem a olhos vistos. Faltam médicos generalistas na atenção básica, faltam pediatras em serviços especializados, faltam obstetras e faltam estímulos para os clínicos permanecerem clínicos e os cirurgiões gerais permanecerem cirurgiões gerais. Surge então, tardiamente, o legislador querendo resolver problema tão complexo com leis impostas sem o mínimo debate com a sociedade e o Executivo arregimentando médicos estrangeiros para suprir o déficit que a falta de adequação na formação e a inexistência de carreiras para o sistema ajudou a aprofundar.

Não existe solução milagrosa para este quadro e as atitudes paliativas ocasionarão mais distorções ao que já está absurdamente distorcido. Embora existam inúmeros conflitos de interesse envolvidos, o que está em jogo é a sobrevivência do SUS.

Entre as medidas necessárias para a correção deste quadro estão: mudança efetiva na formação e especialização médica, com enfoque na formação de médicos generalistas e das áreas básicas e regulação adequada do número de especialistas; previsão a médio e longo prazo do número de especialistas; melhora na gestão do setor público com a profissionalização dos gestores e consequente melhora no uso dos recursos; regionalização, hierarquização e integração efetiva dos equipamentos de saúde facilitando o acesso da população; condições adequadas de trabalho nas unidades básicas e programa de saúde da família; relacionamento adequado e equilibrado com o setor suplementar; estabelecimento de carreira para os profissionais do SUS com possibilidade de crescimento profissional e salarial; ampla ação de educação em saúde para a população promovendo a conscientização sobre direitos e responsabilidades no uso adequado dos equipamentos de saúde.

Irene Abramovich, Nosor Oliveira Filho, Olímpio J. Nogueira V. Bittar são médicos especialistas em Saúde Pública. Artigo publicado no jornal Valor Econômico

*As opiniões emitidas nos artigos desta seção são de inteira responsabilidade de seus autores e não expressam, necessariamente, o entendimento do CRM-PR.

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