24/09/2020
Nova edição é publicada na véspera do STF julgar a portaria, mas o julgamento foi retirado da pauta logo após a publicação do texto. Para especialistas, mudança foi jogo de palavras e jogada política do Ministério da Saúde
O governo federal publicou nesta quinta-feira (24), no Diário Oficial da União (DOU), uma nova edição da portaria que estabelece o procedimento para realização de aborto em caso de estupro. Apesar de retirar a palavra "obrigatoriedade", o novo texto mantém a regra dos profissionais da saúde de denunciarem o caso à polícia, independentemente da vontade da vítima.
“A reedição manteve a obrigatoriedade da notificação dos profissionais da saúde à polícia. Eles apenas mudaram a regra de lugar na portaria, que antes estava no Artigo 1 e agora está no Artigo 7º”, explica a pesquisadora em gênero do Anis - Instituto de Bioética, Luciana Brito. Ela explica que a nova portaria obriga o profissional da saúde a comunicar a polícia em até 24 horas, desrespeitando o código de ética dos profissionais da saúde.
“O texto cita uma Ação Penal Incondicionada, dando a entender que já era uma obrigatoriedade do hospital e dos profissionais fazerem a denúncia. Mas isso não é correto; a Ação Penal Incondicionada somente obriga a Justiça a denunciar, o Ministério Público no caso”, explica.
“Não é obrigação do médico fazer a denúncia. A função primordial dele é de cuidar da vítima e de guardar sigilo se assim ela quiser”, diz a pesquisadora.
A edição foi publicada um dia antes de o Supremo Tribunal Federal julgar a imposição dos profissionais da saúde em denunciar o caso à polícia, descrita em portaria editada no fim de agosto. Por isso, para especialistas, a publicação pode ser interpretada como uma manobra política.
"Isso [nova edição] pode ser uma jogada política para confundir o STF, mas a gente espera que o ministro relator entenda que a natureza da reedição da portaria é a mesma", afirma Luciana Brito.
A professora da Universidade de Brasília (UnB) e pesquisadora em gênero, Débora Diniz, afirmou nas redes sociais que a reedição da portaria é um "jogo de palavras" e "uma chacota" com o STF.
“Ministério da saúde reeditou a portaria do aborto. Na véspera do julgamento do STF. Uma chacota com a corte pelo jogo de palavras. O dever do médico de comunicar a polícia ficou ainda pior: agora há referência legal para intimidar os médicos”, publicou nas redes sociais a pesquisadora Débora Diniz, da Universidade de Brasília (UnB).
Contudo, o julgamento da portaria com as novas regras para o aborto legal não deverá mais acontecer, já que ele foi retirado da pauta do STF logo após a publicação do novo texto.
Em nota, o Conselho Federal de Medicina (CFM) informou que encaminhou a nova edição da portaria sobre as regras para realização do aborto legal ao Departamento Jurídico.
“O CFM tomou conhecimento da portaria publicada pelo Ministério da Saúde e a encaminhou para avaliação de seu Departamento Jurídico e de sua Câmara Técnica de Ginecologia e Obstetrícia. Os conselheiros e técnicos vão analisar os pontos contidos no documento e seu impacto no exercício da profissão”, informou a nota.
O texto foi publicado no DOU nesta quinta tem a assinatura do ministro da Saúde, Eduardo Pazuello.
O que estabelece a portaria
Na portaria anterior, o texto estabelecia como “obrigatória a notificação à autoridade policial pelo médico, demais profissionais de saúde ou responsáveis pelo estabelecimento de saúde que acolheram a paciente sobre os indícios ou confirmação do crime de estupro.”
Já o novo texto retira a palavra “obrigatória”, mas mantém que o dever de “o médico e os demais profissionais de saúde ou responsáveis pelo estabelecimento de saúde que acolherem a paciente dos casos em que houver indícios ou confirmação do crime de estupro” de “comunicar o fato à autoridade policial responsável”.
Ambas as portarias estabelecem que os profissionais da saúde também devem “preservar possíveis evidências materiais do crime de estupro a serem entregues imediatamente à autoridade policial ou aos peritos oficiais, tais como fragmentos de embrião ou feto”.
Mudanças
Como pontos positivos, Luciana Brito destaca que a nova portaria retirou o trecho que determinava que a equipe médica deveria informar à gestante a possibilidade de se realizar uma ultrassonografia, para que a vítima de estupro visualizasse o feto ou embrião.
“Como é uma situação de estupro, a mulher poderia ser submetida a uma situação de tortura [ter que ver o feto resultado do estupro]”, diz a pesquisadora.
Outra mudança foi a retirada do artigo que dizia que a paciente deveria “proferir expressamente sua concordância, de forma documentada” ao procedimento do aborto em caso de estupro.
No Brasil, o aborto é permitido por lei e realizado pelo Sistema Único de Saúde (SUS) em três cenários:
» se a gravidez é decorrente de estupro;
» se a gestação representa risco de morte para a mãe;
» e em caso de bebês com diagnóstico de anencefalia (sem cérebro viável).
O que diz o Ministério da Saúde
Em nota, o Ministério da Saúde afirmou que a portaria oferece segurança jurídica aos profissionais da saúde e que a notificação à polícia é importante para que a Justiça inicie as investigações o quanto antes.
“A normativa mantém o apoio e a segurança jurídica aos profissionais de saúde envolvidos no procedimento. O objetivo é reduzir o número de casos de violência sexual contra mulheres e crianças e apoiar as autoridades policiais na identificação dos responsáveis, garantindo a segurança e proteção de pacientes com indícios ou confirmação de abuso sexual. A partir da notificação policial, se torna possível a instauração de procedimentos que possam levar à punição rápida dos criminosos”, disse a pasta em nota.
Procedimentos
O Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez, nos casos previstos em lei, possui quatro fases que deverão ser registradas no formato de termos confidenciais, arquivados anexos ao prontuário médico.
A primeira fase é o relato sobre as circunstâncias do crime de estupro, realizado pela própria gestante perante dois profissionais de saúde do serviço. O Termo de Relato Circunstanciado deverá conter local, dia e hora aproximada do fato, tipo e forma de violência, descrição dos agressores, se possível, e identificação de testemunhas, se houver.
Na segunda fase, serão feitos exames físicos e ginecológicos pelo médico responsável, que emitirá parecer técnico. A gestante também deverá receber atenção e avaliação especializada por parte da equipe de saúde multiprofissional, composta por obstetra, anestesista, enfermeiro, assistente social e/ou psicólogo. Três integrantes dessa equipe subscreverão o Termo de Aprovação de Procedimento de Interrupção da Gravidez, que não poderá ter desconformidade com a conclusão do parecer técnico.
A terceira fase é a assinatura do Termo de Responsabilidade, que conterá a advertência expressa sobre a previsão dos crimes de falsidade ideológica e de aborto, previsto no Código Penal, caso não tenha sido vítima do crime de estupro.
A quarta fase se encerra com o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, que deverá conter a declaração expressa sobre a decisão voluntária e consciente da gestante de interromper a gravidez. Para isso, a mulher deve ser esclarecida, em linguagem acessível, sobre os desconfortos e riscos possíveis do aborto à sua saúde; os procedimentos que serão adotados para a realização da intervenção médica; a forma de acompanhamento e assistência, assim como os profissionais responsáveis; e a garantia do sigilo quanto aos dados confidenciais envolvidos, passíveis de serem compartilhados em caso de requisição judicial.
Todos os documentos que integram o Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez deverão ser assinados pela gestante, ou, se for incapaz, também por seu representante legal. Eles serão elaborados em duas vias, sendo uma entregue à gestante.
Fontes: G1 e AgênciaBrasil