21/01/2018
Gerson Zafalon Martins
O tratamento de pacientes em estado terminal devido a doenças incuráveis ou acidentes graves é um dos assuntos mais delicados e polêmicos da medicina.
“Não é uma questão de morrer cedo ou tarde, mas de morrer bem ou mal.” (Sêneca, 4 a.C. – 65 d.C.)
Paciente com doença terminal, sem nenhuma chance terapêutica, quando em estado mental plenamente capaz, deixou recomendações de que não queria receber tratamento médico extraordinário, supérfluo, fútil, ser entubado ou levado à UTI. Em resumo, não queria que prolongassem desnecessariamente o seu sofrimento. O seu médico assistente deve atender este pedido?
A Constituição Federal, no artigo 1.º, inciso III, trata da dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado Democrático; considerando que o princípio da autonomia está implícito no artigo 5.º, e o seu inciso III reza que “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”, a dignidade como autonomia envolve, em primeiro lugar, a capacidade de autodeterminação e o direito de decidir os rumos da minha própria vida. Legalmente, o Conselho Federal (CFM) e os Conselhos Regionais de Medicina são os órgãos supervisores da ética profissional em toda a República e, ao mesmo tempo, julgadores e disciplinadores da classe médica, cabendo-lhes zelar e trabalhar por todos os meios ao seu alcance, pelo perfeito desempenho ético da medicina e pelo prestígio e bom conceito da profissão e dos que a exerçam legalmente.
O CFM tem sido instado pelo STF ou por lei a normatizar vários aspectos fundamentais de interesse da sociedade, sempre com base nos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da autonomia, da liberdade, da vida em seu sentido mais amplo, da personalidade, dentre outros. Deste modo, o CFM normatizou a ação médica na ortotanásia (Resolução 1.805/2006), no desligamento de aparelhos quando do diagnóstico de morte encefálica em não doadores de órgãos (Resolução 1.826/2007), na interrupção de gestação de feto anencéfalo (Resolução 1.989/2012), nas diretivas antecipadas de vontade (Resolução 1.995/2012), na reprodução assistida (Resolução 2.168/2017) e na morte encefálica (Resolução 2.173/2017), dentre outros atos médicos. Ressalta-se que a Justiça validou a Resolução CFM 1805/2006 (ortotanásia) e, com esta decisão, o médico está autorizado pelo paciente ou seu responsável legal a limitar ou suspender tratamentos exagerados e desnecessários que prolonguem a vida do doente em fase terminal de enfermidades graves e incuráveis.
O tratamento de pacientes em estado terminal devido a doenças incuráveis ou acidentes graves é um dos assuntos mais delicados e polêmicos da medicina. Isso porque, em alguns casos, os procedimentos adotados causam dor e ainda mais sofrimento ao paciente, o que reflete também nos familiares e médicos. Diante disso, o CFM aprovou a Resolução 1.995/2012, vigente desde 31 de agosto de 2012, pela qual determina aos médicos o respeito à vontade do paciente sobre cuidados e tratamentos a serem administrados em estágios onde não exista possibilidade de recuperação ou incapacidade de se expressar seu desejo. Toda pessoa no pleno gozo de suas faculdades mentais pode redigir este documento, que poderá ser modificado pelo paciente a qualquer tempo.
Os novos recursos tecnológicos na medicina permitem a adoção de medidas desproporcionais que prolongam o sofrimento do paciente em estado terminal, sem trazer benefícios, e essas medidas podem ter sido antecipadamente rejeitadas por ele. Na prática profissional, os médicos podem se defrontar com esta situação de ordem ética ainda não prevista nos atuais dispositivos na legislação nacional.
As diretivas antecipadas de vontade dos pacientes, que alguns chamam de “testamento vital”, são definidas nesta resolução como o conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer ou não receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade. São aptos a expressar sua diretiva antecipada de vontade quaisquer pessoas com idade igual ou maior a 18 anos ou que estejam emancipadas judicialmente. O interessado deve estar em pleno gozo de suas faculdades mentais, lúcido e responsável por seus atos perante a Justiça. Menores de idade que estejam casados civilmente podem fazer testamento vital, pois o casamento lhes emancipa automaticamente. Crianças e adolescentes não estão autorizados, e nem seus pais podem fazê-lo em nome de seus filhos. Nestes casos, a vida e o bem-estar deles permanecem sob a responsabilidade do Estado.
Pela Resolução 1.995/2012, o registro da diretiva antecipada de vontade pode ser feito pelo médico assistente em sua ficha médica ou no prontuário do paciente, desde que expressamente autorizado por ele. Não são exigidas testemunhas ou assinaturas, pois o médico – pela sua profissão – possui fé pública e seus atos têm efeito legal e jurídico. Caso o paciente manifeste interesse, poderá registrar sua diretiva antecipada de vontade também em cartório. Contudo, este documento não será exigido pelo médico de sua confiança para cumprir sua vontade. O registro no prontuário será suficiente. Independentemente da forma – se em cartório ou no prontuário –, essa vontade não poderá ser contestada por familiares. O único que pode alterá-la é o próprio paciente.
Este instrumento, baseado na dignidade e autonomia do ser humano, torna possível que uma pessoa, maior de idade e plenamente consciente, deixe previamente definido o seu fim de vida, se deseja ou não prolongá-la de forma artificial em caso de acidente ou problema de saúde com danos comprovadamente irreversíveis. Permite que ela se manifeste acerca dos cuidados, tratamentos e procedimentos a que deseja (ou não) ser submetida quando estiver com uma doença ameaçadora da vida, fora de possibilidades terapêuticas e impossibilitado de manifestar livremente sua vontade. Este documento terá validade quando a pessoa estiver em situação de fim de vida, estado vegetativo persistente ou uma doença terminal.
Nas decisões sobre cuidados e tratamentos de pacientes que se encontram incapazes de comunicar-se, ou de expressar de maneira livre e independente sua vontade, o médico deve levar em consideração as suas diretivas antecipadas de vontade. Caso o paciente tenha designado um representante para tal fim, suas informações deverão ser consideradas e atendidas pelo médico. As diretivas antecipadas do paciente prevalecerão sobre qualquer outro parecer não médico, inclusive sobre os desejos dos familiares. O médico registrará, no prontuário, as diretivas antecipadas de vontade que lhes foram diretamente comunicadas pelo paciente. Mas o médico deixará de levar em consideração as diretivas antecipadas de vontade do paciente ou representante que, em sua análise, estiverem em desacordo com os preceitos ditados pelo Código de Ética Médica ou legislação penal, como a eutanásia, que é a abreviação da vida ou morte por vontade do próprio doente, considerada crime no Brasil.
Ressalta-se que a Resolução CFM 1.995/2012 foi motivo de ação civil pública proposta pelo Ministério Público Federal (Processo nº 1039-86.2013.4.01.3500 – Justiça Federal - Seção Judiciária do Estado de Goiás), visando suspender a sua aplicação. O motivo seria a inconstitucionalidade e ilegalidade da norma ética. Em louvável e humana decisão, o juiz federal Jesus Crisóstomo de Almeida, em 14 de março de 2013, entendeu que a “Resolução é constitucional e se coaduna ao princípio da dignidade da pessoa humana, uma vez que assegura ao paciente em estado terminal o recebimento de cuidados paliativos, sem o submeter, contra sua vontade, a tratamento que prolongue o seu sofrimento e não mais traga qualquer benefício”.
Respondendo agora à pergunta inicial, o médico deve atender à vontade de seu paciente, que, quando plenamente capaz, determinou que o deixassem partir em paz. Como recomendou o escritor e filósofo Rubem Alves no diálogo entre o paciente e seu médico: “Mas há algo que os seus remédios podem fazer. Não quero morrer com dor. E a ciência tem recursos para isso. Muitos médicos se enchem de escrúpulos por medo de que os sedativos matem. Mas eu lhe digo: Isso é fazer com que o final da sonata não seja um acorde de beleza, mas um acorde de gritos. A vida humana tem a ver com a possibilidade de alegria! Quando a possibilidade de alegria se vai, a vida humana se foi também.E esse é o meu último pedido: quero que minha sonata termine bonita e em paz... Mas tenho muito medo do morrer. O morrer pode vir acompanhado de dores, humilhações, aparelhos e tubos enfiados no meu corpo, contra a minha vontade, sem que eu nada possa fazer, porque já não sou mais dono de mim mesmo; solidão, ninguém tem coragem ou palavras para, de mãos dadas comigo, falar sobre a minha morte, medo de que a passagem seja demorada. Bom seria se, depois de anunciada, ela acontecesse de forma mansa e sem dores, longe dos hospitais, em meio às pessoas que se ama, em meio a visões de beleza”.
Gerson Zafalon Martins, ex-presidente do Conselho Regional de Medicina do Paraná (CRM-PR), é membro da Câmara Técnica de Bioética do Conselho Federal de Medicina e vice-presidente da Sociedade Brasileira de Bioética.