Com hospitais em colapso e filas de espera por leitos de terapia intensiva, escolha é pautada em princípios ético-legais;
conselheira do CRM-PR, Nazah Cherif Mohamad Youssef, concedeu entrevista à reportagem
No início do ano passado, quando o número
de casos de Covid-19 começou a fugir do controle em países da Europa, as notícias que relatavam o avanço
das mortes ressaltavam a falta de leitos nos hospitais e a árdua tarefa delegada aos profissionais de saúde,
que deveriam decidir quais pacientes teriam a chance de lutar pela vida em um leito de UTI. As imagens dos hospitais lotados
e as histórias de pessoas que eram deixadas para morrer em suas casas por falta de vagas nas instituições
de saúde comoveram o mundo.
No
momento em que o Brasil registra quase quatro mil mortes diárias e cerca de 320 mil óbitos decorrentes da Covid-19,
a cada dia cresce o número de médicos impelidos a tomarem a difícil decisão. Em grande parte dos
hospitais do País, a lista de espera por uma vaga de terapia intensiva supera a capacidade de atendimento das instituições
de saúde e uma lista de critérios foi elaborada pela Amib (Associação de Medicina Intensiva Brasileira)
e Abramed (Associação Brasileira de Medicina de Emergência), com o auxílio de profissionais da
saúde e do direito, para nortear os médicos em suas ações.
O Protocolo de Alocação de Recursos em Esgotamento Durante a Pandemia
por Covid-19 apresenta uma tabela de critérios. Amparado por princípios ético-legais, o documento pretende
evitar avaliações subjetivas a partir do julgamento clínico individual.
Na primeira versão do protocolo, lançada em abril
de 2020, em vez de capacidade funcional, era considerada a idade do paciente. No início de março deste ano,
foi feita uma atualização segundo a qual deve prevalecer o consenso de que “o princípio mais sólido
é o de priorização de pacientes com melhores chances de benefício e com maiores expectativas de
sobrevida”.
Especialista em clínica
médica e primeira secretária do CRM-PR (Conselho Regional de Medicina no Paraná), Nazah Cherif Mohamad
Youssef destacou que há um protocolo médico de catástrofe, criado há muitos anos, para casos como
enchentes, terremotos e acidentes com muitas vítimas. “Isso envolve, inclusive, a ambulância que vai atender
no local da ocorrência. Tem que ser feita a escolha, não de quem vai ser cuidado, mas a escolha de quem prioritariamente
vai para um leito de UTI. O critério é a chance de quem mais pode sobreviver.”
No momento da decisão, os médicos baseiam-se em critérios
clínicos, como as doenças pré-existentes e as comorbidades. “A comorbidade é algo que se
leva muito em consideração e outro fator é como a pessoa está no momento e como vai evoluindo.
A reavaliação clínica deve ser feita a cada duas horas”, esclareceu Youssef.
A avaliação do estado clínico
de cada paciente é feita por meio de um sistema de pontuação chamado Sofa, sigla em inglês para
Sequential Organ Failure Assestment, que pode ser traduzida como avaliação de falência de órgão
sequencial. Esse sistema estratifica o grau de gravidade das disfunções orgânicas apresentadas por um
paciente. Os valores absolutos do Sofa são divididos em quartis baseados na mortalidade hospitalar e cada quartil recebe
uma pontuação crescente de um a quatro pontos. Quanto maior a pontuação, menores as chances de
sobrevida. “Os pacientes que pontuam acima de oito, a taxa de mortalidade supera os 80%”, explicou Youssef.
O Sofa é utilizado como escala dentro
do critério de “salvar mais vidas”, mas não é o único. Há outras três
formas de análise que quando aplicadas atribuem a cada paciente uma pontuação. Pelo critério “salvar
mais anos de vida”, avalia-se a presença de comorbidade grave com probabilidade de sobrevida inferior a um ano.
Caso isso ocorra, soma-se três pontos à conta.
A “capacidade do paciente” é medida por meio da escala de performance funcional
Ecog (Eastern Cooperative Oncologic Group) que vai de “completamente ativo” até “completamente
incapaz de realizar autocuidados básicos. E, por fim, caso haja empate de pontos, o protocolo recomenda usar a seguinte
ordem de escolha: menor pontuação Sofa e julgamento clínico da equipe de triagem".
Referência para toda a região Norte do Paraná,
o Hospital Universitário de Londrina vive seus piores dias. Nesta quarta-feira (31), os 66 leitos de UTI adulto exclusivos
para tratamento da Covid-19 estavam ocupados e a taxa de ocupação na unidade de terapia intensiva era de 109%.
Outros 72 pacientes estavam na fila à espera de um desses leitos.
Neste momento em que o número de infectados pelo novo coronavírus levou
a instituição ao colapso, os médicos seguem a orientação do CFM (Conselho Federal de Medicina)
contida na Resolução 2.156/16, que estabelece os critérios de admissão e alta em UTI. Nela, os
pacientes são priorizados com base na necessidade de tratamento ativo ou monitorização, dependendo da
probabilidade de recuperação e da limitação ou não de suporte terapêutico. “Aqueles
que têm indicação de UTI são classificados de P1 a P4”, explicou a médica intensivista
do HU, Lucienne Tibery Queiroz Cardoso. Uma diretriz americana publicada também em 2016 traz a mesma orientação.
Caso haja mais de um paciente com a mesma
prioridade, ressaltou a médica intensivista, eles são alocados nos leitos por ordem de chegada. “Essa
estratégia de alocação de recurso escasso já era empregada antes da pandemia, mas agora, na atual
situação de catástrofe em que vivemos, onde o número de vítimas supera sobremaneira o de
leitos disponíveis, faz-se necessário aprimorar ainda mais esses critérios”, expôs Cardoso.
A médica salientou, no entanto, que
enquanto aguardam por um leito de UTI, os pacientes são assistidos com recursos de terapia intensiva pelas equipes
dos setores onde estão alocados, em sua maioria, no pronto-socorro. “São avaliados várias vezes
ao dia também pelo Time de Resposta Rápida, que leva o olhar do médico intensivista para o cuidado a
esses pacientes nessa UTI extra muros, quando necessário.”
Intensivistas fazem ‘a escolha de Sofia’, analisa médico
“Do ponto de vista da reflexão
bioética, a situação emergencial, crítica, na qual o profissional tem que tomar uma decisão
entre quem vai receber o benefício do leito de UTI e quem não vai receber é a ‘escolha de Sofia’”,
definiu o médico cardiologista e professor da PUC-PR José Eduardo de Siqueira, membro assessor da Redbioética
da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura)
na América Latina e Caribe.
O romance
do norte-americano William Styron ao qual Siqueira se refere narra a estória de Sofia, polonesa presa em um campo de
concentração com dois filhos pequenos e que é obrigada a escolher qual deles irá para a execução.
Siqueira cita o estudo Condições
de Trabalho dos Profissionais de Saúde no Contexto da Covid-19, feito em 2020 pela Fiocruz, no qual foram ouvidos 16
mil profissionais de saúde. Coordenado pela socióloga Maria Helena Machado, a pesquisa revelou o aumento considerável
de alterações emocionais entre esses trabalhadores. “Quem toma a decisão, vai dormir com ela”,
observou.
Pelo critério utilitarista
adotado no mundo todo, disse Siqueira, entre a pessoa idosa e o jovem, se escolho o jovem porque ele tem uma perspectiva de
permanência na sociedade mais longa. “Isso é muito cruel.”
Do ponto de vista da bioética, há um critério de reflexão
que envolve dois momentos de ação. O primeiro, citou o médico, corresponde às autoridades públicas,
que têm como missão defender a saúde pública. “Se no Brasil as autoridades de saúde
tivessem observado o que aconteceu na Itália e na Inglaterra, a gente teria tomado decisões no sentido de aumentar
o número de leitos, o que foi feito, mas teria que ter uma postura de vacinar em massa, testar em massa e isso não
aconteceu.”
O segundo nível
de responsabilidade diz respeito à atuação dos profissionais de saúde. “Ali não resta
nada a não ser tomar uma decisão de grande dramaticidade entre quem vai morrer e quem vai viver”, avaliou.
“O maior erro está na atitude preventiva e na obediência à Constituição, fazendo com
que as medidas e a alocação de recursos seja uma coisa sensata. Chegar a esse número obsceno, de 300
mil mortes, vamos ter que carregar na nossa história. Na Itália, em 2020, eles não tinham alternativa.
Agora, nós, em 2021, teríamos que ter.”
Siqueira alerta ainda para outro ponto que considera de extrema importância, mas que não está
sendo acolhido com o devido cuidado que é a impossibilidade de os familiares velarem seus mortos. “As famílias
estão privadas de fazer uma elaboração do luto. Na cultura ocidental sempre tivemos momentos de elaboração
do luto. Do ponto de vista do sofrimento humano, chegamos em um extremo de desrespeito à dignidade humana.”
Fonte: Folha de Londrina