05/09/2013

Padre-médico vê com reservas chegada dos estrangeiros

Com meio século de trabalho dedicado aos indígenas e ribeirinhos da Amazônia e reconhecido internacionalmente, Dr. José Raul Matte vê iniciativa do governo como eleitoreira "para se louvar"

O padre e médico pediatra José Raul Matte acaba de concluir a 391.ª etapa da edição 24 do projeto Missões Camilianas na Foz do Amazonas, do qual é idealizador e coordenador. Prestes a completar 80 anos, 54 de Medicina e com grande parte deste período dedicado ao trabalho missionário na atenção aos indígenas e ribeirinhos da Amazônia, ele tem autoridade indiscutível para falar sobre os vazios assistenciais no Brasil e sobre o programa Mais Médicos, o qual considera uma iniciativa eleitoreira. Dr. Raul diz ver com reservas a forma como estão sendo trazidos os médicos estrangeiros e prevê não apenas dificuldades de adaptação aos costumes, cultura e idioma, mas também pela precariedade da infraestrutura para trabalhar e para morar. “Aqui, mesmos nos serviços instalados, não temos remédios, materiais e nem curativos, que dirá material cirúrgico. Esse pessoal de Brasília precisaria ao menos fazer uma visita aos lugares onde vão atuar essas centenas de médicos e ver as condições locais, antes de enviá-los”, diz.

clique para ampliar>clique para ampliarPadre e médico pediatra José Raul Matte. (Foto: Divulgação)

Natural de Curitiba e com graduação em Medicina pela UFPR em 1959, o padre-médico incluiu sua análise ao programa do governo federal instituído pela MP 621/2013 nos relatos das últimas missões semanais que realizou, feitos via email para o Conselho de Medicina do Paraná. “Apenas dou aos senhores a minha versão. Se vierem para melhorar, Deus seja louvado!”, assinala o Dr. Raul, para quem é inegável “que precisamos de mais médicos”. A título de reflexão, contudo, ele indaga: “Por que não prevíamos esta situação? Fomos muito rígidos na abertura de novas faculdades. Demoramos, muito para perceber que precisaríamos de novos e muitos colegas. Na verdade, temos muitos colegas que mereciam a cadeira de uma faculdade.”

Voltando à questão dos médicos ‘importados’, realça a desconfiança e faz comparativo: “Como nós nos sentiríamos atuando num outro país? Como os novos colegas vão se adaptar a um país estrangeiro com língua e costumes tão diferentes? E justamente num meio rural onde o próprio brasileiro leva tempo para se adaptar? E o mais grave: onde residir, onde trabalhar? Nos lugares que mais se necessita não há nem ambulatórios. O médico deveria morar numa salinha de um agente de saúde que concederia a sua casa para morar. E se o médico tem família ‑ creio que muito deles a tem –, como irá resolver este novo problema. Os de Cuba vêm sem família... sabe lá que confusão vai surgir?”.

Dr. Raul Matte lamenta a forma como um grupo estrangeiro foi recepcionado e diz: “Meu respeito pelos novos colegas que surgirem. Não devem ser vaiados. É falta de educação assim proceder. Vamos ver quanto tempo eles vão se fixar em nosso País. Aqui no Amapá, um deles deverá atuar entre as aldeias indígenas. Eu as visito ocasionalmente, pois nenhum médico se dispõe a ir. E, quando fui, não havia lugar para dormir senão com os agentes da Funai”. Referindo-se aos relatórios das missões, diz que ali estão expostas as realidades que enfrenta, e reforça: “Eu teria muito a acrescentar, mas me poupo. Apenas dar aqui presença do meu repúdio à solução política e eleitoreira que o governo aproveitou para se louvar”. 

HISTÓRICO ÍMPAR

Esperança, solidariedade, justiça social e amor são sinônimos presentes na vida do Dr. José Raul Matte, que sempre se manteve entusiasmado em suas duas vocações: a Medicina e Religião. Ele formou-se médico em 1959 e em 1967 consolidou sua vida religiosa ao ser ordenado padre da Congregação Camiliana. Chegou em 1972 em Macapá, no Amapá, com a missão de atuar num hospital particular para atendimento a carentes. Três anos depois a unidade foi absorvida pelos camilianos e mais tarde transformada em Hospital-Escola São Camilo e São Luís. Barco doado pela Cruz de Malta possibilitou ao padre-médico alcançar as comunidades mais afastadas. Foram assim centenas de missões levando apoio médico e espiritual. Além das comunidades que vivem às margens dos “igarapés”, o médico também visita as aldeias indígenas, localizadas em regiões de difícil acesso e que raríssimas vezes recebem a visita de profissionais da saúde.

“Nem o Amazonas, o maior rio do mundo, é capaz de barrar José Raul Matte. Semanalmente, sem temer tempestades ou águas agitadas, ele adentra a floresta para levar sua mensagem e seu cuidado a milhares de pessoas”, diz trecho de material jornalístico produzido pelo CFM. De fato, nestas décadas de atendimento, ele colecionou histórias e aventuras. “Sinto-me como um barquinho solto na vastidão do Amazonas, mas pilotado por Deus”, fala.

Toda essa dedicação mereceu reconhecimento até no exterior. Em 2008, durante a comemoração dos 60 anos da Declaração dos Direitos Humanos, seu trabalho social rendeu-lhe o Prêmio Cardeal Van Thuân de Direitos Humanos, recebido das mãos do papa Bento XVI, no Vaticano. Além dele, somente outros dois padres foram homenageados por realizarem um trabalho semelhante na África.

No Paraná, ele recebeu do Conselho de Medicina as duas maiores honrarias hoje concedidas aos médicos. Primeiro, por seu trabalho social e humanitário, ele recebeu em 1997 a “Medalha de Lucas – Tributo ao Mérito Médico”, que até hoje alcançou apenas 11 profissionais. Em 2009, ao completar 50 anos de formado, recebeu o “Diploma de Mérito Ético-Profissional”. No ano passado, o Conselho Federal de Medicina conferiu ao Dr. José Raul Matte a comenda Dra. Zilda Arns Neumann, de Medicina e Responsabilidade Social.

AS MISSÕES

A última missão do Dr. José Raul Matte, a 391, foi concluída no dia 31 de agosto e envolveu as comunidades de Pacovera, Maruim, Sarraria Pequena e Cristo Rei, no Amapá. De acordo com ele, o objetivo do Projeto é levar saúde para onde nunca vão médicos, colocar um agente em cada comunidade e criar de um posto de saúde. Os agentes, membros selecionados na própria região, são treinados anteriormente no Hospital São Camilo. Os postos são construídos com contribuições de algumas entidades e com a colaboração da comunidade. Ao todo já existem 33, nas 80 comunidades que são visitadas pelas Missões. Além disto, a ideia é levar amparo religioso para a população.

“A motivação para o trabalho é social e religiosa. Cuidamos do corpo e da alma das pessoas”, diz. Ao final do dia, em cada localidade por onde passa, ouve confissões, celebra missas e, quando necessário, realiza batizados e casamentos. Durante as visitas são feitas ainda palestras educativas sobre saúde básica. Irmã Maria do Socorro, que o ajuda e é fitoterapeuta, fala também sobre remédios caseiros e ensina a população como utilizar os recursos naturais disponíveis para fazer seus próprios medicamentos. Além da parte teórica, em algumas ocasiões, também prepara-os, juntamente com a comunidade. Os atendimentos são feitos nos Postos de Saúde ou nas escolas, quando existem na região, ou então nas capelas. Durante duas semanas alternadas por mês, os dois trabalham nas Missões, e nas outras, atendem no hospital.

CONFIRA O RELATO DA ÚLTIMA MISSÃO

“O cartão de visita de Macapá mostra a figura da Fortaleza, construída há 250 anos na margem esquerda do Amazonas, como defesa da possível invasão dos Franceses. Bem de fronte se avista outra porção terrestre a uma distância provável de 30 km, uma enorme ilha cortada por um braço de águas que recebe o nome de Furo dos Porcos, já no Estado vizinho ao nosso. Ao longo deste “furo” se estabeleceram as comunidades que visitamos.

Já previamente anunciada, nossa missão foi enriquecida com a presença da Irmã e Dra. Anne Kempchen, moradora em São Paulo que também nos acompanhou na missão passada.

A população já nos aguardava, motivada também pela presença de um agente de saúde da Prefeitura de Afuá –PA- que realizava as devidas vacinações então programadas para esta região. Não havendo Postinhos de Saúde, aproveitava-se então das instalações da escola local. E ali também logo iniciamos o nosso trabalho.

Somando os atendimentos de toda a missão, foi este o resultado modesto que tivemos:

» Consulta médica (233) – crianças, 168; adultos, 65. E mais 51 crianças em 2 escolas.

» Verificação da pressão arterial ‑ 120 (alguns bem hipertensos; só ausculta cardíaca).

» Aplicação de Flúor nos dentes das crianças de 6 a 13 anos: 85.

» Rastreamento da hanseníase pelo exame da pele: 92, com um caso suspeito e 10 contactantes.

» Coleta de material ginecológico na busca do câncer (PCCU): 22.

» Curativos: 02.

» Injeções: 05.

» Celebração da Missa 04.

Como se possa imaginar, as pessoas nos aguardavam com a simpatia e esperança de sempre quando para tais regiões anunciamos a visita. Notadamente as mães levam todos os seus filhos, razão da quantidade de crianças que sempre estão presentes. E a avaliação é quase sempre a mesma: desnutrição e anemia em boa parte da meninada. Desta vez tivemos pouco sulfato ferroso por restrição de medicamentos que recebo do governo.

As surpresas não faltam. Um menino altamente febril, havia dias, e que já fora atendido em posto de saúde em Macapá, onde também lhe pediram exames, mas como não acusou alterações o dispensaram. Pedi internação no nosso hospital diante de sua intensa prostração e febre (39º). Pedi revisão noutro menino de três anos com história de convulsões e outro com quadro típico de autismo. Na escola, pedi à professora providenciar o encaminhamento para outro menino com apenas uma orelha. Outras muitas crianças com presença de micoses e dermatites no dorso por intensa sudorese foram devidamente orientadas ou mesmo medicadas.

Havia também uma revisão de outro menino de 11 anos que fora atendido e operado aqui no nosso hospital, por extração de um rim que se partiu diante uma queda violenta. Já bem recuperado.

Entre os adultos, uma senhora com um mínimo de visão e estrábica que fora atendida por farmacêuticos, que lhe disseram não haver tratamento, por sinal com filho e um devoto marido. A Dra. e D. Rita conseguiram orientar as senhoras e os já idosos encaminhei para o exame de PSA.

A ocasião foi mais uma possibilidade de um encontro com Nosso Senhor nos pobres. Feliz experiência para a Dra. e para mim. A Natureza e as pessoas muito concorrem para tanto. E para mim outra oportunidade de transmitir aos colegas a alegria de ainda poder servir no corpo e no espírito. Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!” - Pe. Raul.

Relatório da missão 387. 

Relatório da missã0 388.

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