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Apesar da evolução do País, é indiscutível
a redução da qualidade do atendimento médico em todo o território nacional. Apenas 5% da população
utiliza a medicina privada no Brasil. Os outros 145 milhões dependem unicamente do Sistema Único de Saúde
(SUS), que é magnificamente planejado, mas não dispõe de recursos orçamentários que financiem
a sua atuação.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) já demonstrou que o investimento público mínimo
por habitante é de US$ 500. No Brasil, o setor público gasta 3,5% do produto interno bruto (PIB) com a saúde.
Essa quantia equivale a menos de US$ 300 por habitante, bem abaixo do mínimo recomendável.
Recentemente, a crise financeira internacional afetou todas as grandes economias mundiais. Para evitar falências
bancárias e de outras instituições financeiras medidas econômicas foram elaboradas e executadas
com grande rapidez. Surgiu dinheiro para tudo: bancos, montadoras de automóveis, indústria de construção
civil, comércio, operações de crédito, junção de empresas, aquisição
de eletrodomésticos, operações de socorro financeiro para todos os gostos e peculiaridades. Ninguém
falou em dinheiro extra para a saúde e a educação, que nunca foram prioridades, para nenhum governo,
desde a época das capitanias hereditárias.
O trabalho médico mal remunerado, cada vez mais realizado em condições precárias, a dificuldade
de manter o processo de educação continuada em razão do rápido avanço tecnológico,
além do acúmulo de novas informações, que complicam e encarecem o exercício profissional
do médico, são alguns dos percalços da profissão no País.
Assim, o médico e outros profissionais de saúde têm o "privilégio" do duplo emprego
e de uma remuneração indigna, que induz o leigo a imaginar que aquela remuneração deveria ser
multiplicada por dois e ainda embutida outra fonte de remuneração proveniente do consultório, além
de eventuais "bicos" privados, que constituem exceção, e não regra.
A realidade salarial dos médicos é muito diferente, pois a maioria deles não consegue o duplo
emprego e não tem consultório. Ao contrário, faz uma "ponta" de atendimento em consultório
alheio, do tipo uma hora por semana, para não atender ninguém.
A maior parte dos profissionais é oriunda de Secretaria estadual ou municipal de Saúde, e não
do cargo de médico do Legislativo ou do Judiciário, que ganha melhor, mas representa menos da metade do
que ganham os seus respectivos patrões, todos pagos por nós, contribuintes.
Os salários dos médicos da rede pública situam-se entre R$ 1.200 e R$ 1.800 por carga de 20 horas
semanais. Considerando a teoria do duplo emprego, seria uma renda entre R$ 2.400 e R$ 3.600 por 40 horas semanais.
Bem diferente, por exemplo, do cargo, recém-criado, de carcereiro da Polícia Federal, aprovado pelo
Congresso Nacional, com salário inicial de R$ 12 mil, no mesmo dia em que a Associação Médica
Brasileira (AMB) fazia uma ruidosa e concorrida manifestação no Legislativo federal para solicitar um salário
de médico do serviço de R$ 7.500 para um regime de 20 horas semanais e de R$ 15 mil para 40 horas. O salário
de carcereiro foi aprovado sem problemas e a proposta da AMB ainda não foi votada em plenário.
Podemos concluir, claramente, que o duplo emprego é uma falácia, só prejudica o médico,
que ainda é erroneamente rotulado como "vilão" da grande tragédia do mau atendimento prestado
à população. É preciso reconhecer, contudo, que precisamos trabalhar num sistema em que possamos
ser avaliados em presença, eficiência e qualidade de atendimento.
Médico e educador são profissionais de carreira de Estado, concebida como tal, contratados em cargo
único, no regime de CLT, com salário digno, em horário integral - horário que possa ser ajustado
entre plantão ou complementação ou diário contínuo e sem o pretenso "guarda-chuva"
de uma estabilidade do servidor público que muito beneficia os que nada fazem.
E o valor do salário? O salário é o que a AMB preconiza e que pode ser negociado por meio de
um plano de cargos e salários para que possa ser atingido de acordo com entendimento mútuo.
Greve de médico é inadmissível no serviço público, mas não a luta pela dignidade
no trabalho e por condições adequadas de atendimento do usuário do SUS. A vida não tem preço,
mas a medicina tem custo e o governo precisa arcar com sua responsabilidade. A população não pode
pagar o preço de não ter alternativa de tratamento.
A grande maioria dos hospitais públicos não possui orçamento e o que arrecada do SUS, com suas
tabelas irrisórias, não paga o custo do serviço prestado, o que constitui perfeita receita de insolvência.
O problema, contudo, não é apenas de recursos, mas também de gestão profissional. O que
se faz é administrar a escassez, a falta de planejamento e de competência e as limitações do
serviço público tradicional, engessado, sem criatividade e dotado de uma fiscalização ineficiente
e sem agilidade. Hoje existem outros modelos de gestão pública eficientes, já testados, porém
solenemente ignorados.
O diálogo, portanto, precisa ser estabelecido. É inadiável. O atendimento médico não
pode ser improvisado. Necessita de planejamento e execução profissional e de novos modelos de gestão
pública para que possa atingir o seu objetivo, que é a melhoria do atendimento de saúde de nossa sofrida
população, que nada tem que ver com essa discussão entre médicos, que lutam pela restauração
de sua dignidade e condições mínimas adequadas de atendimento, e os governos atuais, que herdaram
o produto do descaso acumulado por sucessivas administrações.
Edmundo Machado Ferraz é presidente do Colégio Brasileiro de Cirurgiões e escreveu para
o jornal O Estado de São Paulo em 30 de dezembro de 2008.