30/04/2009
O seguro obrigatório e a afronta à cidadania
O seguro obrigatório que garante - ou deveria garantir - o amparo financeiro às vítimas de acidentes de trânsito no País foi
criado pela Lei Federal 6.194, de 12 de dezembro de 1974, isto é, em pleno regime militar. Passada esta jornada de quase 35
anos, o que não mudaram foram os privilégios para o setor privado de seguros, a quem compete gerenciar, hoje, cerca de R$
5 bilhões/ano, dinheiro pago pela sociedade a título de encargo obrigatório e sob a chancela fiscalizadora do Poder Público.
A exemplo de outras concessões públicas que tanto escandalizam a Nação, a um "pool" de seguradoras está entregue a gestão
de um sistema que, blindado pela falta de transparência, dita as regras e calibra seus lucros. Afinal, manusear estatísticas
e valores monetários é a sua especialidade, ainda mais com grau de convencimento que fazem morrer de inveja nossos diretores
e administradores hospitalares, que há muito tentam mostrar o realístico desajuste numérico entre o que recebem do SUS e o
custo de seus serviços.
Por um terço de século um sistema passeia, sereno e absoluto, sem ser submetido a uma consulta pública, a um processo
licitatório ou a uma auditoria com o mesmo rigor aplicado aos demais setores privados que se relacionam com o Poder Público.
Não seria a hora, então, de extinguir esse monopólio? Se não quer abrir uma concorrência, não seria apropriado ao governo,
que ora exalta a expansão de suas instituições financeiras oficiais para frear a gana dos bancos privados, assumir a completa
gestão do DPVAT? Sim, estatizar, pois o direito à saúde a todos os cidadãos já está consagrado na Constituição e o SUS não
cria exclusões, em que pese sua dificuldade de financiamento. Salvo melhor juízo, a considerar os critérios atuais, este (seguro
obrigatório) deve ser o sistema com a menor probabilidade de perda e de maior ganho econômico em todo o Planeta. Mesmo em
tempo de crise mundial, o reajuste do seguro para 2009 beirou os 45%, com uma folga arrogante para o percentual de sinistralidade.
Sem contar que em algumas categorias, como a de motos, a corretagem saltou de 0,5% para 8% do valor cobrado e as despesas
gerais de 3,44% para 6,5%. Isto, com óbvio reflexo depreciativo na provisão de indenizações.
Bem, não bastasse o Conselho Nacional de Seguros Privados acolher a planilha apresentada pelas seguradoras, a Medida Provisória
451, editada no apagar das luzes de 2008, veio escancarar de vez o cenário de privilégios, em detrimento aos direitos de cidadania.
Ou melhor, estabeleceu-se uma burocracia tal que vai muito além de desestimular a vítima de acidente de trânsito, ou familiar,
a buscar reembolso de suas despesas médico-hospitalares, elevando os ganhos das seguradoras. Vai desestruturar o sistema atual,
onde o acidentado é atendido pelo Siate ou Samu, que são públicos, e assistido em instituições conveniadas ao SUS, já que
as não conveniadas dificilmente mantêm pronto-socorro para politraumatizados. Colocar sob suspeita os hospitais públicos ou
contratados é inconcebível nas circunstâncias atuais, sobretudo se há indução para a criação de um sistema - daí sim - ilícito
de indenizações.
Voltemos à questão: se o DPVAT tem em seu rateio direcionamento de 45% do arrecadado para o SUS, 5% para o Denatran fazer
campanhas educativas e de 35 a 44% para indenizações, por que não o sistema público administrar o seguro com a conta lógica
de aplicar em saúde todo o valor arrecadado, descontando naturalmente as despesas gerais, corretagem e indenizações por morte
e invalidez? Em tempos de portabilidade de planos de saúde e em que o Ministério da Saúde acusa as operadoras de não reembolsarem
o sistema público em mais de R$ 2,6 bilhões de usuários atendidos pelo SUS, soa com estranheza que se tente aumentar ainda
mais os ganhos daqueles que se agarram num privilégio nascido no seio da "ditadura". Será que as operadoras de saúde, como
cooperativas médicas e de medicina de grupo, que são cobradas a reembolsar os valores da assistência de seus usuários no sistema
público tem reciprocidade quando o atendimento teve origem em acidente de trânsito?
Em linhas gerais é preciso reconhecer que o DPVAT tinha se transformado numa importante renda adicional para os hospitais
que atendem aos SUS e instrumento de economia para o gestores públicos, considerando que os tetos financeiros estão engessados,
contrastando com o aumento da demanda de atendimento de emergência - reflexo inclusive do crescimento da frota de veículos
no país. Não será justificável qualquer argumento para assegurar a urgência de uma medida provisória logo depois de concedido
reajuste para os valores dos seguros de todas as categorias de veículos automotores. E no jogo de números é preciso haver
racionalidade. As seguradoras podem ter dado "um tiro no próprio pé" ao dizerem que hospitais paranaenses e catarinenses,
juntos, ficaram com 51% dos reembolsos de despesas hospitalares. E informa que o valor chegou a R$ 35 milhões, o que subentende-se
que a despesa global anual ficou em cerca de R$ 70 milhões. Uma contabilidade rústica sugere que o ganho das seguradoras foi
de mais de R$ 1 bilhão em 2008, incluindo aí suas despesas operacionais. E que pode, pelo jeito, mais que triplicar em 2009.
É preciso enaltecer a mobilização empreendida por todas as instituições do setor de saúde, públicas e privadas, bem como
dos parlamentares sensíveis à questão e alheios ao lobby do poderio econômico, como o ilustre paranaense André Zacharow, autor
de medida supressiva contra a famigerada MP 451. E também gestores públicos que sabem da importância dos recursos e estão
igualmente empenhados em impedir a desintegração dos serviços de atendimento de emergência, como o diretor do Serviço de Urgência
e Emergência de Curitiba, Matheos Chomattas. A sociedade exige transparência. Se for necessária uma CPI do seguro obrigatório,
que se faça. Se há excessos e ilicitudes na estrutura assistencial, que sejam corrigidos, e se atos dolosos aos interesses
públicos, que sejam punidos. Sob um regime de rigorosa auditoria, soa leviana e criminosa a acusação de dupla cobrança por
hospitais como justificativa para alterar a sistemática. E afronta uma sociedade, cada vez mais esclarecida e consciente de
suas obrigações e de seus direitos. Direito, aliás, que pode ser o de escolher a operadora e valor do prêmio mais adequado
à sua condição financeira ou necessidade.
Benno Kreisel é médico e presidente da Associação dos Hospitais do Paraná (AHOPAR).