23/02/2015

O maior problema, há sete anos na liderança

César Felício

Discretamente, o governo federal começou a criar as condições para encerrar uma das maiores polêmicas após o terremoto de junho de 2013. Antes mesmo de ser confirmado no cargo pela presidente Dilma Rousseff, o ministro da Saúde, Arthur Chioro, retomou o diálogo com as entidades que reúnem a classe médica do país.

Chioro acenou com a possibilidade de criar uma carreira de Estado para médicos e convocar concurso para o setor. É uma bandeira antiga dos profissionais de saúde, que colocaram todo tipo de obstáculo para atrasar a implantação do programa Mais Médicos, a iniciativa de maior impacto do petismo na área desde que chegou ao poder.

O ministro e os representantes do ramo convergiram também em relação a outros temas, como o combate à proliferação de cirurgias cesarianas desnecessárias, a máfia das próteses e órteses e o impulso para a formação de mais especialistas. Ao menos pelos próximos 90 dias, a trégua está assegurada. Será uma oportunidade para o governo trabalhar com menos pressão sobre uma política pública essencial.

Talvez por efeito das denúncias contra a Petrobras, pela falta de água no Sudeste ou por uma resposta tardia da opinião pública em relação ao Mais Médicos, a saúde recuou 17 pontos como a principal preocupação do país entre dezembro e fevereiro, de acordo com a última pesquisa Datafolha. Ficou ainda cinco pontos percentuais à frente da corrupção, o mal que emerge na consciência nacional.

É um dado circunstancial, que não elimina o fenômeno que torna o Brasil um caso raro no mundo: em um conjunto de 40 países rastreados por pesquisas comparativas compiladas por organizações como Latinobarômetro, Eurobarômetro e Pew Research, somente em dois a saúde é o maior transtorno apontado pela população local: além do Brasil, tal situação acontece apenas na Holanda.

Foram nos cinco primeiros anos do governo de Luiz Inácio Lula da Silva que a saúde tornou-se o drama central da opinião pública. Desde 2008, nunca mais deixou de sê-lo. Quando o patamar de desaprovação com a área chegou a estratosféricos 48%, na esteira das manifestações de 2013, Dilma lançou a proposta que abriu o país para os médicos cubanos e jogou os profissionais do setor nos braços da oposição.

O governo jogou foco em um aspecto que vinha apresentando uma aparente melhora nos últimos anos. Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), havia menos de um médico por mil habitantes no Brasil em 1991. Em 2013, esta proporção havia subido para 1,89 por mil. A queda de braço de dois anos atrás deixou evidente que o problema brasileiro não é a escassez de mão de obra, mas sim a dificuldade de engajá-la no interesse público.

A área da saúde bate em retirada no setor público de maneira lenta, gradual e constante desde 1993. De acordo com informações do Datasus, a densidade de leitos hospitalares do sistema por mil habitantes era de 3,35 há 22 anos. Em 2009 era de 1,8. Entre 2010 e 2014, houve o fechamento de mais 10 mil leitos de internação na rede pública e conveniada. Eram 349,2 mil vagas em outubro do ano passado.

Mesmo levando em conta as outras 150 mil vagas existentes na rede privada, está claro que o Brasil retrocede na oferta hospitalar, há muito tempo. Entre 1968 e 2015, a população cresceu 128%. A oferta de leitos, públicos e privados, aumentou 33%. Há 46 anos, havia 3,6 vagas por mil habitantes, públicas e privadas. Hoje, são 2,3, contando os leitos fora do SUS.

Parte do recuo não se explica por qualquer idiossincrasia brasileira: o avanço da medicina está diminuindo a demanda por internações no mundo inteiro. No Reino Unido, talvez o país com o sistema de saúde mais abrangente do mundo, havia 297 mil leitos hospitalares disponíveis em 1987 no sistema público de saúde (NHS). Este ano, são 134,7 mil vagas. O fato é que o Brasil por muitas décadas esteve dentro da média mundial de oferta de leitos e hoje está abaixo dela. O Brasil faz parte de uma onda mundial, mas por motivos diferentes.

"Há um sucateamento da saúde e o fechamento de leitos reflete um problema de financiamento do setor. Além da dificuldade de se fazer o controle e a avaliação dos estabelecimentos conveniados, que levou a muitos descredenciamentos", disse o presidente do Conselho Federal de Medicina, Carlos Vital. Uma explicação para o fechamento de leitos é a saída do sistema público de muitos hospitais de pequeno porte, que não se equilibram apenas com os recursos repassados pelo governo.

O CFM distribuiu no ano passado uma planilha que mostra, em valores corrigidos para julho de 2014, que o recurso orçamentário pago para investimento na saúde em 2013 foi inferior ao liberado em 2002. É um material curioso, porque prova que o fim da CPMF, em 2007, impactou pouco no setor. No ano em que o tributo acabou houve uma queda no investimento de R$ 2 bilhões para R$ 1,6 bilhão, mas no ano seguinte as liberações já atingiram R$ 2,1 bilhões, para alcançar os R$ 3,9 bilhões de 2013.

O Ministério da Saúde já respondeu publicamente tanto à redução do número de leitos quanto aos recursos minguados para o financiamento. O órgão comandado por Chioro destacou que o crescimento de programas preventivos, a desativação de manicômios e o aumento do atendimento ambulatorial compensou a redução das vagas para internação. Lembrou não somente do caso britânico como também do canadense. E destacou que o orçamento executado pelo ministério como um todo, incluindo as despesas correntes, cresceu nos últimos anos, ultrapassou os limites mínimos estabelecidos pela Emenda Constitucional 29 e deve chegar a R$ 100 bilhões em 2015.

Enquanto o debate transcorre, nada menos que 4,8% dos entrevistados em uma pesquisa do Datafolha de meados do ano passado, encomendada pelo CFM, declarou esperar ou ter alguém em casa necessitando há mais de um ano por algum tipo de serviço do SUS. Em uma projeção grosseira, tomando como base a estimativa da população brasileira feita pelo IBGE, estaria-se falando de algo como 10 milhões de pessoas.

Artigo de César Felício, editor de Política do Jornal Valor Econômico.

*As opiniões emitidas nos artigos desta seção são de inteira responsabilidade de seus autores e não expressam, necessariamente, o entendimento do CRM-PR.

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