02/09/2013
Carlos Vital Tavares Corrêa Lima
A vinda de médicos cubanos ao Brasil é irregular?
Sim
A polêmica autorização para o trabalho de médicos com diplomas obtidos no exterior sem revalidação e comprovação de proficiência na língua portuguesa encerra falso dilema, embutido na medida provisória nº 621/2013, que subsidia o programa Mais Médicos.
A verdadeira questão resume-se à disponibilidade de médicos legalmente capacitados e habilitados.
Trata-se de estratégia criada para esconder a exposição da maior e mais carente parcela da população a profissionais sem qualificação comprovada, omitindo da sociedade o quadro de discriminação social estabelecido com a divisão do povo em suseranos e vassalos ou cidadãos de primeira e de segunda categoria.
O argumento coator imposto aos cidadãos das áreas de difícil provimento se limita à seguinte premissa: aceite esse meio médico ou parte de médico ou permaneça doente.
A interpretação jurídica de caráter sociológico da medida, que possa vir a conferir-lhe relevância social, aponta para um paradoxo moral e ético e configura-se como a hermenêutica do desamparo.
No Brasil, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (n.º 9394/1996) exige que os médicos estrangeiros revalidem seus diplomas em instituições públicas de ensino superior. Tal exigência é reforçada por outra regra ainda em vigor: a lei n.º 3.268/1957. Portanto, o projeto em fase de implementação resulta na contratação ilegal de brasileiros e estrangeiros com diploma de médico obtido em outros países.
Não obstante essa agressão legal no caso de todos os estrangeiros, ainda surge uma outra--igualmente revestida de gravidade-- para os cubanos importados. As condições de trabalho previstas para esse grupo não atendem aos ditames constitucionais e implicam na aceitação --por meio de acordo bilateral-- de práticas coercitivas dentro do território nacional, típicas de regimes totalitários ou ditatoriais.
Se existe dificuldade de acesso e de oferta da assistência às populações de municípios distantes ou das periferias das grandes cidades, não serão em medidas com essas características que o país encontrará as soluções adequadas.
Não é admissível que o Estado brasileiro --signatário de diversos tratados internacionais para a tutela dos direitos humanos, inclusive para a erradicação do trabalho escravo-- possibilite a contratação de estrangeiros em situações precárias de terceirização, com cerceamento de direitos individuais e coletivos e com a retenção da maior parte dos recursos recebidos pelo governo cubano. As contratações têm que ser pessoais e os salários, pagos a quem presta o serviço.
As autoridades brasileiras não podem explorar o labor de milhares de pessoas desrespeitando as leis vigentes no país, em especial a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e o artigo 7º da Carta Magna (tutela dos direitos sociais trabalhistas).
Os gestores do nosso Sistema Único de Saúde (SUS) utilizam em larga escala o argumento de que os médicos estrangeiros não podem ser excluídos do programa Mais Médicos, sob pena de instaurar o caos na saúde pública. Dizem que inexistem médicos nativos em número suficiente e dispostos a trabalhar no interior. Com mecanismos de marketing, lançam a opinião pública contra qualquer posição divergente.
Essas premissas são falsas e apenas impedem um debate pautado por consistência e transparência. O Brasil, a dignidade e a saúde de seu povo, assim como a consideração aos seus médicos, valem mais do que uma eleição!
Artigo de Carlos Vital Tavares Corrêa Lima, primeiro vice-presidente do Conselho Federal de Medicina, publicado no jornal Folha de S. Paulo.