03/01/2010
O direito de viver e de morrer
O bem da vida e a dignidade humana, ambos protegidos pela ordem estatal, são patrimônios e valores supremos. Ao confrontá-los,
qual deles deve preponderar sobre o outro? A resposta a esta interrogação não pode ser genérica ou cartesiana, mas relativa
e de mérito individual. No Brasil, o tema ganha relevância quando o Congresso Nacional avança nas discussões em torno de projeto
de lei do senador Gerson Camata (PMDB-ES), que retira a ortotanasia do rol das ilicitudes penais.
O texto, que seguiu para a Câmara dos Deputados, para nova e decisiva votação, da ao cidadão enfermo grave o direito de
morrer com dignidade, sem a obrigatoriedade de uso de meios desproporcionais em respeito a sua vontade, dando-lhe tão somente
conforto físico, psíquico e ate mesmo espiritual, segundo a lógica dos chamados cuidados paliativos. Essa proposta se harmoniza
com a resolução 1805, do Conselho Federal de Medicina (CFM), que, desde 2006, procura - sob o prisma ético - disciplinar o
uso de tratamentos fúteis ou obsessivos em pacientes na fase terminal da vida.
Na assistência médica contemporânea, se tornou possível prolongar de maneira indefinida o processo de morte, à custa de
transformação do direito a vida em dever de sofrimento. A descontinuidade dessas condutas, com o objetivo de evitar o sofrimento
sem razão de ser, não deve ser interpretada como crime.
O processo de ortotanásia significa a morte no momento certo, nem apressada, como no caso da eutanásia, e nem prolongada,
como no caso da distanásia. Seu advento garante a humanização do processo de morte ao evitar prolongamentos irracionais e
cruéis da vida do paciente, poupando-o e a sua família de todo o desgaste que essa situação envolve.
De forma geral, as religiões não são contrárias a ortotanásia. Na Igreja Católica, há manifestações favoráveis em três
bulas papais. Na encíclica Evangelium Vitae, de 1995, o papa João Paulo II opõe-se ao "excesso terapêutico", afirmando ainda
que a renúncia a "meios extraordinários ou desproporcionados" para prolongar a vida não equivale ao suicídio ou à eutanásia.
Para ele, essa renúncia exprimiria "a aceitação da condição humana defronte à morte".
Efetivamente, este tema ultrapassa o saber teórico e atinge a prática. Todos os dias utilizamos noções do que é justo
e do que não é; do que é bem e do que é mal. A fundamentação das escolhas com base em concepções é o exercício bioético, conceituado
hoje como o principal alicerce de construção da ética na convivência humana.
Em meio a um universo de técnicas de mecanização da vida, a preservação da dignidade humana no processo de morte por doença,
constitui um imenso desafio ético. Neste campo, na medicina, despontam o direito a vida e o direito a dignidade. O caminho
que nos leva ao encontro dessa dignidade é o de união da fé, da lei e da razão. Porém, não menos imprescindível é a convicção
de que a vontade que se subordina a lei é a mesma que a prescreve e interpreta. Portanto, não há espaço na lei, na norma ou
em suas interpretações para contrariedades à dignidade da natureza humana.
Para o melhor dimensionamento da complexidade das questões envolvidas, não se pode ignorar alguns dilemas de final de
vida. Entre eles, estão as formas seguras de antecipação da vontade, como o testamento vital - documento no qual a pessoa
consigna suas vontades quanto aos cuidados médicos que pretende, ou não receber, se perder a capacidade de expressão ou se
encontrar em estado de incapacidade - e a nomeação de procurador para consentimento aos cuidados de saúde.
O debate ao redor de tema tão delicado tem prosperado em vários países. Na Espanha, dentro do conceito de autonomia, em
2000, foi aprovada a lei de vontades antecipadas, que prevê a existência de testamento vital. Desde 2006, em Portugal, tramita
um projeto que regula o direito de se formular diretivas antecipadas da vontade. No Brasil, acompanhamos atentamente o debate
que se arrasta há nove anos no Congresso confiantes na sensibilidade dos parlamentares diante da descriminalização da ortotanásia.
Enfim, o direito de viver a própria vida e o direito de morrer a própria morte, o primeiro e último dos direitos potestativos
(aqueles que independem de terceiros para serem exercidos), devem ser observados a luz da vontade do paciente em fase terminal.
Trata-se do respeito ao direito daqueles que desejam seguir sua jornada como Karol Wotjyla, o papa João Paulo II, que recusou
sua internação e permaneceu em casa, aguardando sua passagem em paz e com dignidade.
Carlos Vital Lima - 1º vice-presidente do CFM, sócio-fundador da Sociedade Brasileira de Bioética, regional de Pernambuco