01/06/2012
O direito de fazer Medicina
A Constituição de 1988 estabelece, em seu artigo 196, que a Saúde é direito do cidadão e dever do Estado, sendo que essa garantia
deve se tornar realidade por meio da adoção de políticas sociais e econômicas. A materialização desse princípio legal passa
diretamente pela mão dos governantes.
Cabe a eles a tarefa de programar e executar as ações fundamentais à redução dos riscos de doenças e de outros agravos,
assim como viabilizar o acesso universal e igualitário às ações e serviços para a promoção, a proteção e a recuperação da
Saúde em níveis individuais e coletivos.
O escopo legal da Saúde brasileira ainda ressalta a relevância das ações e dos serviços de saúde, os quais carecem de
regulamentação, fiscalização e controle por meio do Poder Público, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de
terceiros e, também, por pessoa física de direito privado.
Considerado referência internacional - ao menos nos campos teórico e jurídico -, o modelo assistencial brasileiro ainda
conta com formatação, prevista no artigo 198 da Constituição, que determina sua regionalização e integralidade, permitindo
a oferta de cuidados também por meio da iniciativa privada.
A análise rigorosa do texto legal não deixa dúvidas: o cumprimento da obrigação do Estado não está atrelado ao pagamento
de qualquer imposto pelos usuários dos serviços públicos de saúde. Taxas e tributos existem e devem ser pagos, mas não configuram
pré-condição para que o atendimento se efetive na ponta.
Esse detalhe é importante para entender no Sistema Único de Saúde (SUS), tal qual como foi preconizado, uma política social
de enorme abrangência que se volta para cada cidadão de forma equânime, atento às suas peculiaridades, mas sem distingui-los
no seu tratamento.
Ora, sem isso, teríamos diferentes pesos e medidas na oferta da assistência feita pelo Estado. Quem paga mais impostos
tem direito a mais e melhores cuidados? Obviamente que não dentro do SUS. Esse raciocínio consiste numa lógica comercial,
que nada tem a ver com a proposta democrática e pública ancorada na Constituição.
No entanto, esse entendimento não conflita com o direito do profissional exercer sua atividade como autônomo ou participar
de firmas prestadoras de serviço. No campo privado, se pode estabelecer uma relação médico-paciente baseada na ética e no
respeito, onde ambos acordam a modalidade e a forma de execução dos diferentes serviços.
A evolução da sociedade brasileira também contribuiu para organizar esse tipo de assistência. Ao longo das décadas, os
médicos se reuniram em grupos, cooperativas e ao redor dos chamados planos de saúde.
Por meio dessas estruturas, passaram a oferecer seus serviços, em troca de contribuições mensais feitas por usuários e
do pagamento de honorários pelas atividades prestadas. Estes serviços compreendem, inclusive, as instalações onde os procedimentos
são realizados e os insumos e equipamentos necessários.
A rede de saúde suplementar cresceu e, atualmente, oferece assistência a cerca de 46 milhões de brasileiros, boa parte
deles oriundos das classes A e B. Nos últimos anos, percebe-se o aumento da participação de brasileiros da classe C neste
grupo, em parte estimulados pelo melhora do poder aquisitivo médio, em parte descrentes na qualidade do atendimento do SUS.
Mas não são apenas os pacientes que enxergam na rede suplementar uma esperança de melhores cuidados. Para o Estado, essa
estrutura que se formou também traz vantagens ao desafogar os hospitais públicos e permitir reduzir a previsão orçamentária
para o SUS. Se menos cidadãos buscam atendimento no SUS, menos investimentos seriam necessários.
Por outro lado, o Estado ainda fatura pelo pagamento de impostos pelas operadoras e cooperativas que administram os serviços,
sem contar os milhares de médicos e outros profissionais de saúde que contribuem com base nos seus rendimentos.
No entanto, o equilíbrio neste setor está ameaçado. Os planos de saúde - normalmente sob a bandeira de agentes financeiros
- demonstram mais preocupação com o lucro que com a assistência. O compromisso das empresas com os acionistas suplanta suas
responsabilidades com os usuários.
Preocupados em aumentar a rentabilidade do negócio da saúde e na impossibilidade de repassar os aumentos dos custos operacionais
(com equipamento e insumos) para seus clientes, as empresas miram no médico prestador de serviços. Ou seja, é economizando
nos honorários pagos aos profissionais que elas buscam ampliar suas margens.
Nos últimos meses, a tensão chegou a níveis quase insuportáveis entre as operadoras e os agentes financeiros. No entanto,
os médicos devem entender que essa relação está baseada em contratos, que, por sua vez, são atos jurídicos perfeitos que não
podem ser descumpridos, sob pena de causar grandes transtornos.
Mas esse cuidado não implica em apatia ou conformismo. Os médicos insatisfeitos podem denunciar os abusos e, transcorridos
os prazos legais, desfazer os acordos firmados. Afinal, em seu artigo 199, a Constituição estabelece que a assistência à saúde
é livre à iniciativa privada, aí incluídos autônomos e pessoas jurídicas.
O médico pode, inclusive, estabelecer novos contratos, em bases convenientes - aceitando as condições dos agentes financeiros
em sua totalidade ou parcialmente - e retomar suas atividades. Apenas deve estar atento à execução deste processo aconteça
à luz da ética e da legislação.
No momento, em que os médicos buscam vencer essa queda de braço com o mercado, recuperando seu valor em todos os sentidos,
não devem esquecer-se de sua importância. Por mais poderosos que sejam os agentes financeiros, eles nunca poderão oferecer
o diagnostico, a prescrição e o tratamento que configuram o cerne da atividade médica. Aí, reside sua força.
Artigo escrito por José Hiran da Silva Gallo, Diretor-tesoureiro do CFM e Doutorando em Bioética.