06/02/2012

O difícil problema da saúde

Afirmar que a solução para a saúde pública é difícil é um eufemismo. O mais provável é que não haja solução alguma e que se trate, simplesmente, de um problema impossível de ser resolvido.



A questão mais importante é saber que problema é esse. É preciso, antes de mais nada, definir o que está ruim e que, portanto, precisa de uma solução. Para que fique claro: o principal problema do Sistema Único de Saúde é o tempo de espera para marcar consultas e exames. Esse tempo nada tem a ver com o tempo em sala de espera, mas sim com a distância que separa o dia em que um cidadão procura o serviço de saúde para marcar uma consulta e o dia em que a consulta ocorre. Muitos leitores não devem saber, mas é comum que, em todos os lugares do Brasil, se espere três meses ou mais para que ocorra a consulta. Os usuários do sistema privado esperam uma, duas, talvez três semanas para uma consulta médica, ao passo que os usuários do SUS dificilmente são recebidos pelo médico antes de 90 dias.


A via crucis se repete na etapa seguinte, a do exame. Mais uma vez, o tempo de espera é inacreditavelmente longo. Falar em três meses de espera para cada uma dessas etapas é, com frequência, generosidade. Já fui testemunha ocular em uma visita que fiz a um município no entorno do Distrito Federal onde o tempo de espera para uma consulta com o cardiologista ou oftalmologista era de 9 a 12 meses. Imagine-se uma pessoa com um problema tão simples como a vista cansada aguardar um ano para que um médico a receba e só então ter a perspectiva de passar a utilizar óculos. Isso é nada diante das pessoas que morrem porque não foram recebidas por cardiologistas. Essas pessoas entrarão na estatística de morte por AVC ou ataque cardíaco sem que jamais se tenha notícia de que a morte provavelmente teria sido evitada se a consulta médica, e os exames, tivessem sido realizados na mesma velocidade em que são feitos no setor privado.


Como essa espera, para o doente, é equivalente à eternidade, ele acaba indo para um hospital e é recebido, de pé, por um médico que em cinco minutos mede a pressão, tira a pulsação e receita algum medicamento. Muitos de nós conhecemos inúmeras pessoas que passaram por isso. Tempos atrás, nossa empregada doméstica recebeu uma receita de remédio de pressão, quando estava, veio saber depois, com infecção urinária. Os hospitais estão superlotados porque cumprem o papel de substituir a consulta e o exame regular. No final das contas, não acontece nem uma coisa nem outra, mas o doente é, de alguma maneira, atendido.


No debate público sobre a crise da saúde pública aparecem sempre duas soluções. Uma é colocar mais recursos. Isso acabou de acontecer por meio da regulamentação da emenda 29. Ou se fala em melhorar a gestão. Não creio que solução esteja em nenhuma dessas duas medidas.


O aumento de recursos tem limites claros. O Brasil já desfruta de uma das maiores cargas tributárias do mundo, sob qualquer parâmetro de comparação: é a maior dentre os países emergentes, é das maiores na comparação com os desenvolvidos, na América Latina etc. Além da impossibilidade de se aumentar indefinidamente a carga tributária, a saúde pode ser o problema mais importante, mas não é o único. Os recursos do governo precisam ser direcionados para outros problemas, como educação, infraestrutura, política social, previdência etc. Sob qualquer prisma, sob uma análise mais cuidadosa ou mais geral, é muito difícil sustentar que a solução do tempo de espera para consultas e exames esteja no aumento dos recursos direcionados para a saúde.


Melhorar a gestão também não parece ser a solução. O problema do atendimento público da saúde está muito na ponta: ocorre na relação existente entre os médicos e seu trabalho, entre os médicos e seus potenciais pacientes. Nada tem a ver com compra de equipamentos, compra de material hospitalar, coisas assim. O médico precisa se dedicar ao trabalho e, caso isso não ocorra, ele precisa ser punido. É aí que entra o velho e conhecido problema do agente e do principal: ninguém é dono do SUS, ninguém manda nos médicos, eles são o agente, mas não há o chefe, não há o principal que os faça atender a população. A mídia e a população já conhecem o jogo de empurra: os médicos afirmam que são mal pagos e que não têm recursos para trabalhar, os prefeitos e governadores admitem, mas obviamente não dizem em público, que os médicos faltam sistematicamente ao trabalho e nada podem fazer contra isso. Não há gestão que resolva isso, é um típico problema de agente-principal.


O Reino Unido, anglo-saxão, orgulha-se de seu National Health System (NHS). É o SUS do país que acabamos de ultrapassar no PIB bruto. Os anglo-saxões, todos sabemos, são muito diferentes de nós, culturalmente. Trata-se de uma população cuja adesão às regras é infinitamente maior do que a nossa. A implicação disso para o mundo dos serviços é fenomenal: há um dever a ser cumprido. É por isso que, em função de diferenças culturais, devemos esperar que o funcionamento do serviço universal de saúde pública naquele país seja mais eficiente do que no nosso. Mantidas constantes todas as demais variáveis, ser criado em uma cultura voltada para os serviços possibilita uma melhor oferta de serviços. É simples.


No final dos anos 1990, quando o Reino Unido ainda estava longe de produzir menos riqueza do que o Brasil, um levantamento criterioso do NHS concluiu que 90% das pacientes diagnosticadas com a versão grave de câncer do seio tinham que esperar 62 dias para iniciar o tratamento. Para casos graves de câncer do colo, a espera era de 95 dias; para câncer do pulmão, 91 dias; para o cervical, 123 dias; para o de próstata, 143 dias. No Brasil, não existe nenhuma estatística sobre o tempo médio de espera para consultas e exames, muito menos para 90% dos pacientes graves por tipos de câncer.


O que o caso britânico revela, dentre outras coisas, é o problema do agente-principal. Não há controle possível sobre os médicos; o problema é na ponta, é no tempo de espera. Adicionalmente, não há recursos financeiros infinitos. Atualmente, o NHS passa por uma crise sem precedentes, com perspectivas de fechamento de hospitais e medidas do gênero. No Reino Unido, atribui-se isso ao envelhecimento da população e ao surgimento de exames e procedimentos médicos mais custosos. Pode ser. Na realidade, não importa. O sistema público, quando se trata de recursos financeiros, funciona como uma esponja: quanto mais há, mais ele demanda; quanto mais recebe, mais exige. A emenda 29 e sua regulamentação são apenas um sintoma dessa lógica sem fim.


Há solução para esse problema e estamos todos diante dela. A solução, no Brasil, está em andamento. A pesquisa Conta-Satélite de Saúde, do IBGE acabou de mostrar que o gasto privado per capita com saúde é maior do que seu equivalente público em nada menos do que 29%. O governo gasta 645 reais por brasileiro com saúde, ao passo que o gasto médio de cada brasileiro com saúde é de 835 reais. Aí está a solução para o desrespeito, para a espera interminável, para as mortes e a morbidade na fila: os brasileiros vão cada vez mais financiar privadamente seu atendimento de saúde.


Por favor, não esperemos por planos de um demiurgo, novas regulamentações ou pactos sociais em torno do tema. A solução é individual e privada. A solução é incremental, de longo prazo e aparentemente desorganizada. Na medida em que aumentar a renda per capita, as pessoas vão gastar mais com saúde e se livrarão do atendimento público. Trata-se de um desfecho tão inevitável quanto ultrapassar o PIB bruto da França e o PIB per capita do Reino Unido. È apenas uma questão e tempo.


Não há recursos públicos ou eficiência em gestão que resolva o caos do SUS ou do NHS. A solução será fornecida pelos indivíduos, pelos agentes privados que, afortunadamente, graças ao aumento de sua renda, poderão pagar por seus próprios cuidados com saúde. Caberá ao SUS um papel reduzido, de atendimento àqueles que realmente não terão condições de pagar por nada que seja além de alguns atendimentos como emergência, serviços de ambulância e vacinação. Até atingirmos esse estágio, teremos que conviver com a promessa permanente de que há solução para o atendimento público de saúde. Esqueçam. É impossível. O melhor, para quem não acredita em mágica, é que essa promessa entre por um ouvido e saia por outro.



Artigo escrito por Alberto Carlos Almeida, sociólogo e professor universitário. Autor de "A Cabeça do Brasileiro" e "O Dedo na Ferida: Menos Imposto, Mais Consumo".



Publicado no jornal Valor Econômico em 27/01/2012.

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