19/10/2017

O desaparecimento de crianças e adolescentes

José Fernando Maia Vinagre

Como pediatra, ao longo de mais de três décadas de exercício profissional, fui confrontado em diferentes momentos com relatos sobre o desaparecimento de crianças e de adolescentes. Talvez pelo envolvimento com minhas atividades, não visualizasse um fenômeno causador de tantos danos. Com o passar dos anos, mudei minha percepção. Hoje não tenho dúvidas sobre a existência desse tema como um grave problema social, desestruturador de vidas e de famílias.

No Distrito Federal, a auxiliar de cozinha Fátima Carvalho não consegue mais uma noite de sono tranquila. Em São Paulo, Sandra Moreno se tornou uma ativista, com militância reconhecida nacionalmente. Na mesma cidade, Lucélia viu sua vida se transformar numa busca incessante. Três vidas, três histórias, três mulheres que têm dois pontos em comum: são mães de crianças que desapareceram sem deixar rastros e que até hoje mantêm acesa a chama da esperança de que seus dramas tenham um final feliz.

Num País onde as estatísticas sobre esse assunto não são confiáveis, acredita-se que, por ano, em média 250 mil pessoas desaparecem no Brasil sem deixar rastro. Dessas, em torno de 40 mil têm menos de 19 anos, de acordo com estimativas. Desde 2012, o Conselho Federal de Medicina (CFM), com o apoio de várias outras entidades civis, tem tentado recolocar o tema na agenda pública de debates. Contudo, a percepção é de que ainda há muito a ser feito.

Como parte desse esforço, merece destaque a organização de um abaixo-assinado cobrando a efetivação do Cadastro Nacional de Crianças e Adolescentes Desaparecidos. O modelo atual, que está sob a supervisão do Ministério da Justiça (disponível em: www.desaparecidos.gov.br), tem recebido críticas de quem acompanha o tema, pois é considerado desatualizado e sem resultados efetivos no enfrentamento do problema.

Esse Cadastro Nacional tinha como proposta montar um banco de dados seguro, capaz de auxiliar na difusão de informações e no esclarecimento dos casos de desaparecimento. No entanto, após passar por reformulação, a nova versão, colocada no ar em março de 2013, até agora não conseguiu se consolidar como uma referência no enfrentamento da questão.

A baixa adesão sinaliza a falta de efetividade da ferramenta. De acordo com o site R7, em setembro de 2013, eram contabilizados 305 casos cadastrados, em 17 estados. Passados quase dois anos, a quantidade de inscritos não chegava a 400, em 20 estados. A reportagem acusava uma situação de abandono, corroborada pela ONG Mães da Sé, uma das entidades que referência no País sobre esse assunto.

Se funcionasse conforme o previsto, as coisas poderiam ser diferentes. A vantagem estaria no fluxo qualificado de informações, que pode ser fundamental na solução dos casos. Por exemplo, hoje uma criança desaparece em um estado. Porém, a elaboração do boletim de ocorrência numa delegacia de polícia não é garantia de que o alerta será dado em outras unidades da Federação.

Além disso, se essa mesma criança for encontrada em um determinado estado, a falta de integração não ajudará em nada para que ela chegue até os pais ou as autoridades do local onde a ocorrência inicial foi gerada. Em outras palavras, a ausência de comunicação impedirá a busca e, em algumas situações, que um ponto final seja colocado em histórias embebidas em lágrimas e desespero.

O Ministério da Justiça, por sua vez, enxerga o potencial do Cadastro Nacional, mas admite que ainda não conta com a esperada integração com órgãos de segurança pública. Para tanto, anuncia que tenta levar esse projeto adiante, inclusive como forma de dar sequência à Lei nº 12.648, instituída em 4 de julho de 2012, que “prevê a integração de todos os boletins de ocorrência dos Estados e a divulgação de dados de pessoas desaparecidas no portal da Secretaria Nacional de Segurança Pública (Sinesp)”.

Enquanto a solução definitiva não vem, a ineficiência continuará a criar o ambiente propício para que o desaparecimento de crianças e de adolescentes prospere no País. Contudo, se faltam políticas públicas e ferramentas eficientes para prevenir e combater esse fenômeno que afeta esse segmento da população, também não se pode ignorar a necessidade de diagnosticar as causas que levam à incidência de novos casos.

Considerados os possíveis diagnósticos de fenômeno de tamanha complexidade, a sociedade, em especial o governo – em todas as suas esferas de atuação –, deve estar atenta a ações que são necessárias para tratar o problema adequadamente. A atualização do Cadastro Nacional, como defendido pelo CFM e seus parceiros institucionais, é apenas umas das atitudes que devem ser adotadas como urgência.

Além dele, devem ser avaliadas medidas como a criação de delegacias especializadas na área da infância e da juventude, o que poderia tornar mais efetiva a busca pelos jovens desaparecidos, conforme tem sido proposto por representantes da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), em São Paulo. No entendimento do grupo, que atua na Comissão da Infância e da Juventude da instituição, urge a realização de um trabalho multidisciplinar para tratar do problema.

Pela sugestão, o registro da ocorrência poderia ser feito em qualquer delegacia, mas as investigações seriam conduzidas por equipes especializadas. Essas delegacias deveriam ter condições de atuar com uso de infraestrutura e de tecnologias necessárias às apurações, além de contar com equipes multidisciplinares, com assistentes sociais e psicólogos.

No campo policial, também se faz necessário acabar com o mito de que a ocorrência de um desaparecimento só pode ser feita após 24 horas de sua constatação. Pelo contrário, ao primeiro sinal de suspeita, as autoridades devem ser comunicadas para que as investigações tenham início o quanto antes. Aliás, essa questão reforça a relevância de outra medida: a implementação de uma ampla campanha, de caráter permanente, como foco no esclarecimento da sociedade sobre o problema do desaparecimento de crianças e de adolescentes e nas formas de sua prevenção.

Em um País com tantos problemas sociais, o desaparecimento de crianças e de adolescentes não pode ser visto como um tema acessório ou menor. Trata-se de um fenômeno importante que carece de medidas para seu enfrentamento. No Brasil, esse é mais um desafio que se impõe, exigindo respostas concretas das autoridades e também das famílias, que podem ser agentes efetivos de prevenção, seja pela adoção de normas de segurança, seja pelo estímulo ao diálogo entre pais e filhos, certamente fatos de proteção. Assim, muitos homens, mulheres, crianças e adolescentes serão poupados de horas de angústia e de desespero por desconhecerem o paradeiro de seus entes queridos.

José Fernando Maia Vinagre é corregedor do Conselho Federal de Medicina (CFM).

 

*As opiniões emitidas nos artigos desta seção são de inteira responsabilidade de seus autores e não expressam, necessariamente, o entendimento do CRM-PR.

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