20/01/2011
O câncer e o espírito humano
Em 2010 mais de 7 milhões de pessoas no mundo morreram de câncer. Cerca de uma em cada três desenvolverão essa doença durante
sua vida. Essa é a crônica de uma doença milenar, mas que representa um dos maiores problemas para a saúde pública mundial.
Ou, mais do que isso, uma metáfora médica, científica, política e psicológica - a praga da nossa geração. Também denominado
como o imperador de todas as doenças.
A questão fundamental na era da nanotecnologia e da proteômica, e que ainda resiste em sua biografia, apesar de todos
os avanços recentes, é se o câncer existirá no futuro, ou seja, se será possível erradicá-lo da nossa sociedade para sempre.
No fim de tudo, o câncer começa e termina com as pessoas. Um drama pessoal e familiar, onde somam-se o medo da morte e
da mutilação, à esperança da recuperação e da cura. Do ponto de vista científico, trata-se do crescimento incontrolado de
uma única célula, a partir de mutações que, ao modificar o DNA, provocam uma desregulação nas divisões celulares. Uma célula
normal, em condições adequadas, possui um número limitado e previamente programado de divisões celulares.
Em Oncologia jamais será possível separar a ciência da arte, a razão do instinto, e o dado biológico das emoções. A técnica,
ainda que muito avançada, não superará a grande missão de humanidade do médico. Existe uma cumplicidade entre o paciente oncológico
e o médico, talvez a mais profunda em toda a medicina.
"A senhora tem seis meses de vida." O câncer não tira a vida, ao contrário, lhe dá uma outra, completamente diversa. Muitas
vezes coloco às minhas pacientes de câncer de mama que a diferença entre elas e as pessoas que não tem câncer é que elas estão
despertas. Ou seja, têm consciência da fragilidade e vulnerabilidade que estão presentes em todos nós - basta estarmos vivos!
Afinal de contas, todos, um dia, seremos incuráveis. Este doloroso despertar pode nos fazer melhores. Nos dar coragem para
transformarmos o mundo em que vivemos - e transformá-lo para melhor.
O jovem estudante de medicina aprende a ver o paciente como um quadro de Picasso: dividido em tantas formas separadas.
Ele aprende desde cedo a mascarar seus sentimentos e até mesmo a negá-los. A sua atenção está direcionada muito mais para
a Biologia Molecular, para a tecnologia e para a doença. O próprio cadáver na sala de anatomia ensina, ainda que sem a intenção
disso, que ver é mais importante do que escutar. Ao final, o médico conhece muito pouco sobre o doente e, quando se depara
frente a um paciente terminal, o despreparo se transforma em angústia e, no estágio mais avançado, o mais grave: a distância
e a falta de empatia.
O oncologista hoje tem tudo o que todos os nossos ancestrais sonhavam: um tratamento sob medida para cada doença. Paradoxalmente
isso nos afastou dos pacientes. Por isso é necessário um renascimento do humanismo médico, como já afirmamos tantas vezes.
Afinal o PET-Scan e a ressonância magnética não revelam a mente e o espírito dos nossos pacientes. Uma paciente com câncer
de mama pode estar curada com um anticorpo monoclonal de última geração, mas ter perdido todo o sentido de viver - morrer
em vida.
Portanto o que deve ser buscado na Oncologia e na Medicina como um todo é a cura da pessoa humana. Isso vai além da tecnologia
e representa uma grande mudança de paradigma no ensino médico e na cultura das práticas de saúde. Enquanto nas decisões de
saúde pública e de saúde complementar, não se priorizar e, de fato, se valorizar o contato entre o médico e o paciente, continuaremos
com a ilusão de que podemos tudo com a técnica, deixando um grande vazio por detrás de uma atividade que é e sempre foi eminentemente
humana.
No fim, o câncer será vencido um dia, mas novas doenças surgirão para desafiar o espírito humano. A arte, por outro lado,
resistirá.
Cicero Urban, médico oncologista e mastologista, é professor de Bioética e Metodologia Científica no Curso de Medicina
e na Pós-Graduação da Universidade Positivo e vice-presidente do Instituto Ciência e Fé.