20/04/2021

Nascer, morrer: o médico, os documentos e o Estado

Eduardo Murilo Novak

No momento em que vem ao mundo, o indivíduo encontra um universo que seria estritamente biológico, mas que passou a ser regulado por normas diversas naqueles países em que há um Estado de Direito vigente. Assim, pressupõe-se que, ao nascer, a pessoa exercerá todos os atos da sua vida de relação, inclusive os civis. Porém, o Estado obriga que, por meio de um registro, seja feita a comunicação de que tal pessoa veio à luz. O princípio, anote-se, repousa em a pessoa ser registrada civilmente para que ali seja informado onde nasceu, quem são os pais etc.

Mesmo que o nascimento tenha sido sem qualquer assistência médica, ainda assim é garantido o direito de registro. Não fosse assim e haveria uma legião de pessoas sem documentos, vez que há diversos casos de nascimento sem um profissional assistente. Nesses casos, é feita a comunicação ao cartório de que houve tal nascimento. Os informantes se responsabilizam civil e criminalmente pelas informações ali prestadas, podendo o oficial inclusive, se tiver dúvidas quanto ao declarado, ir até o domicílio verificar a existência do recém-nascido, exigir a atestação do médico ou parteira, ou ainda o testemunho de duas pessoas que não forem os pais e tiverem visto a criança. Uma vez registrado, o indivíduo passa a ser juridicamente “reconhecido” pelo Estado.

Essa explicação do registro de nascimento é importante para se compreender o que ocorre quando do falecimento dessa pessoa, pois uma vez que houve o nascimento “civil”, deve ser assentado igualmente o óbito “civil”.

Dessa forma, findo o ciclo de vida, o Estado deverá ser informado de que juridicamente aquela pessoa não mais ali habita. Na maioria das vezes, quem repassa essa informação é um médico. Contudo, assim como ocorre com o nascimento, há exceções em que o próprio cartório poderá lavrar o registro de óbito, desde que haja informantes que descrevam o evento natural que culminou com o êxito letal. Assim está disciplinada na Lei de Registro Civil (6015, de 1973, com redação atualizada em 2017), com fluxo similar ao registro de nascimento:

Art. 77.  Nenhum sepultamento será feito sem certidão do oficial de registro do lugar do falecimento ou do lugar de residência do de cujus, quando o falecimento ocorrer em local diverso do seu domicílio, extraída após a lavratura do assento de óbito, em vista do atestado de médico, se houver no lugar, ou em caso contrário, de duas pessoas qualificadas que tiverem presenciado ou verificado a morte.

É importante esse esclarecimento preambular para deixar claro que um dos “desejos” do Estado é simplesmente reconhecer que aquela pessoa não mais existirá ativamente do ponto de vista jurídico. Em países que não são regulados por leis, para ilustrar, nem registro de nascimento nem de óbito são lavrados, pois não há “direitos” a exercer.

E sublinhe-se que para registrar o óbito não se exige para todos os casos a causa anatomopatológica da morte. Pelo contrário. Em grande parte das vezes presume-se a causa da morte com base no histórico do paciente ou mesmo nos sintomas relatados por pessoas que presenciaram o óbito, principalmente se o médico era o assistente do paciente até então, situação em que, segundo o art. 84 do Código de Ética Médica, será dever do doutor o preenchimento da Declaração de Óbito (D.O.). Por exemplo, se o indivíduo refere uma nucalgia súbita de forte intensidade, seguida de paralisia de um dimídio e a perda dos sentidos, com a consequente parada cardiorrespiratória, não é necessário acessar a base do crânio para constatar que pode ter sido a rotura de um aneurisma de cerebral média a responsável pelo desfecho. Quem vai informar o óbito descreverá como causa provável um acidente vascular, dispensando a verificação visual do sangramento. Com base nisso, o Estado estará ciente da causa da morte, e poderá, entre outras ações, lançar esforços para diminuir a incidência desse tipo de evento.

Noutra ponta, o Estado será responsável por atestar o óbito naqueles casos ditos não naturais. As mortes por outras causas, assim, serão as que necessitarão de um médico oficial (perito), ou designado especialmente para o caso (ad hoc) para a lavratura da D.O. Por isso as causas externas como acidentes, suicídios e homicídios ficarão em regra a cargo do Instituto Médico-Legal (IML), pois face à possibilidade de existência de crime, é necessário que o Estado faça a perícia.

As causas suspeitas, por seu turno, também serão da alçada do IML. Todavia, há de se ter indícios de que não foi óbito natural. E esses elementos devem ser fundamentados e reportados à autoridade para que se inicie o escrutínio, com o exame cadavérico ou necroscópico sendo o documento hábil a figurar nas fileiras inauguratórias do caderno policial.

É natural, porém, que em algumas vezes o médico sinta insegurança na lavratura da D.O. Reitera-se: se for fundamentada, isto é, se houver sinais de causa externa, é evidente que deverá encaminhar ao Estado o corpo. Caso contrário, basta consignar a impossibilidade de se determinar especificamente a causa, anotando como “indeterminada” – e não suspeita – e emitir a D.O. conforme já explanado.

Como a boa fé das pessoas é presumida, então para que se caracterize que foram inseridas informações falsas deve existir o dolo, a vontade de macular a verdade. Também, a responsabilização do emitente da D.O. existirá, por exemplo, quando havia um sinal claro de causa externa, e o profissional não examinou o cadáver, ou quando se atentou à lesão mas, deliberadamente, omitiu-a, independentemente da motivação. Nos demais casos, com o prontuário pertinentemente justificado, e com a D.O. contendo as devidas ressalvas, não há falar-se em responsabilidade.

Em síntese, a Declaração de Óbito é um documento necessário para que o Estado encerre o “ciclo jurídico” nascimento-morte, e deve ser fornecida pelo médico assistente nas situações descritas acima. Na suspeita de morte por causa externa, ou na sua confirmação, a regra é o Estado se encarregar de lavrar a declaração.

*Eduardo Murilo Novak é mestre e doutor em Cirurgia, conselheiro do CRM-PR e professor de Ética e Bioética em cursos de formação médica.
**As opiniões emitidas nos artigos desta seção são de inteira responsabilidade de seus autores e não expressam, necessariamente, o entendimento do CRM-PR.

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