19/11/2008
Mulher recebe órgão feito com suas células-tronco
Trata-se do primeiro transplante de tecido sem usar medicamentos anti-rejeição.Células deram origem a uma nova traquéia
a partir de estrutura de órgão de um doador; médico só havia usado a técnica em porcos.
Pesquisadores divulgaram ontem, no site da revista médica "The Lancet", o primeiro transplante de traquéia feito com engenharia
tecidual -o órgão foi criado a partir de células-tronco da própria paciente. Trata-se do primeiro transplante de tecido feito
sem a necessidade de medicamentos anti-rejeição.
Claudia Castillo, 30 anos, teve as vias aéreas danificadas devido à tuberculose. Em vez receber parte da traquéia de um
doador -o que poderia gerar rejeição de seu organismo-, os cientistas criaram um órgão a partir de células-tronco da medula
óssea e das vias aéreas de Claudia, com uma base de colágeno da traquéia de um doador. Ela fez o transplante há cinco meses
e está levando uma vida normal. O procedimento foi realizado por pesquisadores espanhóis, ingleses e italianos.
Para fazer o novo órgão, foi utilizada como base a traquéia de um doador, que havia morrido recentemente. Por meio de
enzimas e de outras substâncias químicas, os pesquisadores retiraram todas as células do doador da traquéia, deixando apenas
a estrutura de colágeno, chamada de matriz. Isso lhes forneceu um suporte, que foi recoberto pelas células-tronco de Claudia,
multiplicadas ao longo de quatro dias.
Quatro dias após a cirurgia, o órgão era quase idêntico às vias aéreas adjacentes. Um mês depois, a área transplantada
já contava com sua própria vascularização. Claudia não criou anticorpos contra o órgão e não precisou ser medicada com imunossupressores.
Antes de realizar o transplante experimental na paciente, o cirurgião Paolo Macchiari, do Hospital Clínic de Barcelona,
só havia feito o procedimento em porcos.
Sérgio Arap, cirurgião de cabeça e pescoço do Hospital das Clínicas de São Paulo e gerente médico do centro cirúrgico
do Hospital Sírio-Libanês, diz que a utilização de matrizes de colágeno para transplantes já tem sido feita em algumas áreas,
mas a operação realizada em Barcelona é pioneira por ter utilizado células-tronco para o revestimento da matriz. "Não é a
mesma coisa que dizer que a traquéia foi criada a partir das células-tronco."
Perspectivas
Osiris Brasil, cirurgião de cabeça e pescoço do Hospital Albert Einstein e da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo),
ficou otimista com o resultado. "Achei interessante porque há muitos casos de lesões de traquéia causadas por traumatismos
ou entubações por tempo prolongado em que não há mais o que fazer."
Para Brasil, o transplante de traquéia nesses casos será a melhor técnica a ser adotada, pois evitará que pacientes
tenham de conviver com uma traqueostomia definitiva.
Orlando Parise Júnior, cirurgião de cabeça e pescoço do Hospital Sírio-Libanês, destaca o fato de o método dispensar
drogas anti-rejeição. "Essa é a questão-chave no sucesso do transplante. Nesse período de cinco meses, uma rejeição grave
já teria ocorrido."
Para Silvio Duailibi, professor da disciplina de cirurgia plástica da Unifesp e especialista em engenharia tecidual,
o risco de rejeição ainda não pode ser descartado. Ele ressalta que os estudos são promissores, mas incipientes.
Duailibi diz que, mesmo nesse processo, é possível que haja rejeição -caso haja contaminação durante a multiplicação
celular, por exemplo. Outro risco é o de o tecido não funcionar direito."Esse caso mostra a viabilidade da célula-tronco adulta,
que é muito promissora para as terapias", diz.
Mas pondera: "Todo processo novo, sobretudo na terapia celular e na engenharia tecidual, só pode ser adotado quando
se esgotam os modelos experimentais. Aí sim, a terapia pode ser feita em humanos, com aprovação da Anvisa e da FDA."
Parise concorda que ainda é preciso muito estudo para que a técnica seja adotada como rotina no Brasil e no mundo -já
que há o relato de só um caso. "Para introduzirmos uma nova tecnologia, temos de ter regras muito bem estabelecidas e isso
pode demorar muitos anos."
Laringe
Arap acredita que o transplante abre novas perspectivas, mas diz que ainda há um longo caminho a percorrer. Ele vê as
apostas de cientistas no uso da técnica para a reconstituição de laringe, por exemplo, com cautela. "Ao contrário da traquéia,
que é rígida, a laringe funciona como uma válvula e precisa de enervação sensitiva, além da motora", afirma.
Osiris Brasil também faz uma ressalva quanto aos tumores de laringe. "Não é verdade que se tratarão mais tumores de
laringe com essa técnica, pois a laringe perde a função quando é transplantada, diferentemente da traquéia, que não perde
por ser só um tubo."
Fonte: Folha de São Paulo