24/08/2009
"Muitas mortes por gripe suína poderiam ser evitadas"
Autoridade em infecções respiratórias, a cientista explica por que a falta de leitos e de acesso ao remédio criou uma taxa
"absurda" de letalidade no Brasil
Por Mônica Tarantino, da Revista Isto É
Desde que começou a pandemia de gripe suína, em abril deste ano, o número de horas de trabalho diárias da
infectologista Nancy Bellei, 47 anos, subiu de nove para 14. A maior parte desse tempo é dedicada ao estudo do vírus H1N1
- agente responsável pela gripe suína - e ao atendimento dos pacientes com suspeita da doença internados no hospital da Universidade
Federal de São Paulo. Preocupada com a qualidade da assistência, ela diz que muitas mortes poderiam ter sido evitadas. Nancy
tem dezenas de artigos publicados em revistas científicas internacionais e é pós-doutorada em vírus Influenza, o causador
das gripes. Nesta entrevista concedida à ISTOÉ, a médica critica os rumos do controle da epidemia no Brasil. Até a terça-feira
18, o País registrava 368 mortes por H1N1 e tinha 3.087 casos confirmados.
ISTOÉ - A taxa de letalidade da gripe suína no Brasil está em torno de 12%. O que isso significa? Nancy -
Esse índice se refere ao percentual de mortes entre pessoas internadas. Até agora, foram hospitalizadas cerca de seis mil
pessoas no Brasil com sintomas graves e suspeita de gripe.
Dessas, cerca de 1,5 mil tinham testes confirmados. Entre essas últimas, em torno de 12% morreram. Isso é
um absurdo. É um índice altíssimo. Uma taxa baixa seria algo em torno de 2% para esses pacientes, já que, como dizem, é uma
doença que raramente mata. Se fosse mesmo assim, não deveria ser de 12%.
ISTOÉ - Qual a causa disso? É a sobrecarga de pacientes nos serviços de saúde?
Nancy Bellei - Não. As pessoas não estão em pânico. Pânico é quando o indivíduo dá o primeiro espirro e corre
para o pronto-socorro. Mas o que estamos vendo no serviço público é as pessoas chegarem entre 48 e 72 horas depois de os sintomas
aparecerem, quando pode ser tarde demais.
E algumas vêm após terem passado por outros serviços. Eu mesma atendo pacientes com sintomas intensos que
passaram por outros médicos, mas não tiveram indicação do remédio.
ISTOÉ - Então são os médicos?
Nancy - No Brasil, faltou e ainda falta treinamento para os profissionais que atendem nos postos e prontosocorros
para identificar os casos graves e que podem se complicar.
ISTOÉ - Há limitações nos hospitais?
Nancy - Não existem no Brasil leitos em unidades de terapia intensiva para tratar todos os pacientes que precisam
de cuidados. Há grande diferença na qualidade do atendimento prestado em uma UTI de um bom hospital privado e um leito desse
tipo em pequenas cidades, por exemplo.
ISTOÉ - E quanto ao acesso ao remédio?
Nancy - É claro que uma situação de gripe é dinâmica e exige que sejam feitas adaptações nos protocolos de
atendimento. Mas as mudanças constantes nas regras para distribuição do remédio causam confusão. Tivemos pacientes com complicações
porque não receberam o antiviral.
Isso aconteceu inclusive com grupos de risco, como gestantes e hipertensos, porque as orientações anteriores
não previam o tratamento de todos os casos que se enquadrassem nesta categoria. Isso mudou há cerca de três semanas.
ISTOÉ - A culpa é do governo?
Nancy - Foi necessário corrigir o fluxo da intervenção. Toda vez que você tem de corrigir é porque estava
fazendo errado. Muitas vezes, em uma pandemia, nos deparamos com intervenções que não foram as mais adequadas. Em todos os
países isso vai acontecer.
ISTOÉ - As autoridades de saúde estão preocupadas com o uso amplo do Tamiflu porque poderia contribuir para
a resistência ao medicamento. Como vê esse cuidado?
Nancy - Essa é uma das questões mais equivocadas nessa história. A resistência tem duas formas. Uma delas
independe do uso de antivirais. O vírus Influenza muda e de uma hora para outra pode se tornar reresistente em países onde
ninguém usou o remédio. O segundo mecanismo é a seleção. Quando você toma a droga, mata os vírus sensíveis, mas, se tiver
um resistente e isso é uma loteria , ele pode se multiplicar e ser transmitido. O fato é que o vírus resistente, que já apareceu
em vários países, pode chegar aqui do mesmo jeito. Por isso, não usar para controlar a resistência é um engano. Devemos, sim,
utilizar com critério e monitorar a resistência.
ISTOÉ - O medicamento deveria ser prescrito para todos os casos suspeitos?
Nancy - Sim. Para aqueles que o médico avaliar que o remédio trará benefício. Mas hoje só é dado para os grupos
de risco e pessoas que apresentam falta de ar, febre e tosse. Existe também uma orientação que dá ao médico a liberdade de
receitar se achar conveniente. Há uma relação custobenefício importante em tratar as pessoas com sintomas porque, dessa maneira,
evita-se que os casos evoluam para as formas graves da doença.
ISTOÉ - O Ministério da Saúde foi pressionado para flexibilizar a distribuição do remédio?
Nancy - Houve uma ação conjunta da Associação Médica Brasileira, da Associação Paulista de Medicina e da Sociedade
Brasileira de Infectologia para ampliar as regras de prescrição do remédio.
ISTOÉ - A sra. acredita que a ampliação do acesso vai salvar vidas?
Nancy - Com certeza. Muitas vidas poderiam ter sido salvas se isso já estivesse em prática. No início, quando
tratávamos todo caso suspeito, não tivemos nenhuma morte. Isso é uma questão científica e médica.
ISTOÉ - Mas há o argumento de que pode não haver Tamiflu para todos.
Nancy - Isso é uma questão de gestão. O que não pode é estabelecer um fluxo de treinamento médico e de tratamento
de uma situação clínica porque não há remédio. Também não posso deixar de colocar um doente na UTI e dizer que essa é a conduta
correta porque não tenho leitos.
ISTOÉ - A situação do Brasil é mais complicada do que parece?
Nancy - Sim. Mas exatamente por estarmos diante de recursos limitados é que precisamos saber quem são os mais
atingidos e como gerenciar essa situação. Porém, os dados são defasados. Outra coisa importante é analisar o impacto da doença
na vida de quem esteve internado. Metade dos doentes fica uma a duas semanas no hospital, na terapia intensiva, tomando muitos
remédios. Há mães que tiveram bebês prematuros. Tudo isso não tem impacto importante?
ISTOÉ - Afinal, essa gripe é ou não é igual à gripe sazonal?
Nancy - Ela é diferente. É uma doença potencialmente grave para uma pequena proporção de indivíduos e que
pode ter um caráter muito mais sério se não há recursos de saúde para esses pacientes.
ISTOÉ - Um estudo inglês publicado recentemente discutia os efeitos colaterais do Tamiflu em crianças. Houve
mudança nas recomendações?
Nancy - Não. Na última semana, a Organização Mundial de Saúde divulgou um parecer dizendo que é para continuar
prescrevendo o remédio para crianças. Podem haver efeitos colaterais, como náuseas e pesadelos, mas o risco de complicações
é alto nesta faixa etária. Por isso, o benefício do remédio é muito maior do que o prejuízo.
ISTOÉ - O número de casos está caindo no Brasil, como sugere o governo?
Nancy - Em tese, é possível que entre outubro e novembro diminuam os casos na região Sudeste, dependendo da
temperatura. Nesta semana, percebemos uma redução nos atendimentos feitos na Unifesp, mas não dá para saber o que está acontecendo.
É necessário observar mais duas semanas para identificarmos se há uma diminuição real de infectados ou se a queda ocorreu
por causa da mudança na prescrição do remédio. As regiões Norte e Nordeste têm outro comportamento para o Influenza. Lá os
casos são mais numerosos em janeiro e fevereiro. Não sabemos se a taxa de ataque será maior nesses meses.
ISTOÉ - Nos Estados Unidos, avalia-se que o H1N1 pode fazer 100 mil vítimas fatais no ano que vem. Isso quer
dizer que o vírus pode se tornar pior?
Nancy - Eles estão considerando que o vírus pode ficar mais agressivo. É possível pensar isso baseado em pandemias
anteriores.
ISTOÉ - No Brasil, quantas pessoas podem ser atingidas pela pandemia numa segunda onda de casos?
Nancy - Em qualquer onda, a estimativa é que essa pandemia atinja até 30% da população, em um cenário mais
pessimista, e 10% em uma situação mais favorável. Mas é preciso fazer uma estimativa real de quantas pessoas estão sendo atendidas
nos hospitais para saber o que fazer no ano que vem e quantas doses de medicamento e vacinas precisaremos ter.
ISTOÉ - O que fazer na volta às aulas se os casos continuarem a aparecer?
Nancy - É preciso avaliar o tempo de ocorrência entre um caso e outro. Devemos observar entre dois e três
dias para ver se não aparecem outros. Se não ocorrerem, saberemos que são casos esporádicos, porque a criança não se contamina
só na escola. Mas se houver mais, em seguida, pode ser um surto local. Nos países do Hemisfério Norte, tem-se procurado tomar
medidas como cancelar aulas numa sala por uma semana, por exemplo.
ISTOÉ - Como devem agir os pais?
Nancy - Se a criança tiver mal-estar ou dor de cabeça, mesmo sem febre, é melhor deixá-la em casa até o dia
seguinte para ver como os sintomas evoluem. Se estiver febril, com temperatura por volta de 37,3 graus, também não deve ir
para a escola. Apresentando febre e sintomas respiratórios, como tosse, é bom procurar o médico.