12/03/2019
Phillipe Abreu
Pela manhã, pedi um pão com manteiga e café com leite na padaria e lá se foram 5 reais. Difícil imaginar que 25% de toda a população do Haiti vive com menos que o equivalente a 5 reais por dia e outros quase 60% vivem com menos que 10 reais. Um ambiente como esse, com 85% das pessoas vivendo abaixo das linhas da pobreza e da extrema pobreza e 1% detendo 50% dos recursos do país, gera todas as condições para o avanço da violência, desesperança e em alguns casos até à barbárie. Soma-se a isso uma região propícia a desastres naturais, como terremotos e furacões, e uma sociedade de corrupção em todas as esferas de governo. O resultado é inevitavelmente ruim.
Se num primeiro momento a sensação é de voltar no tempo ao desembarcar em Porto Príncipe, logo se percebe o porquê de uma expectativa de vida de um Brasil de 50 anos atrás. Não há coleta de lixo urbano, sendo tudo acumulado ao redor das calçadas. Não há iluminação pública; após o pôr-do-sol só se enxerga o farol dos carros. Não há água potável nas torneiras, muito menos saneamento básico e esgoto encanado. Não há serviço de correios e entregas, porque os endereços e números de casas não existem. As pessoas se localizam por referenciais naturais e macrorregiões da cidade. Hospitais, hotéis, supermercados, condomínios, todos protegidos por seguranças com escopetas e metralhadoras. Agora imagine diagnosticar e tratar câncer neste ambiente.
É o desafio aceito pela ONG IHI (Innovating Health International), que há quatro anos iniciou um programa de prevenção e tratamento oncológico, baseado na arrecadação de fundos internacionais para compra de quimioterápicos, e a organização de missões de cirurgiões para realizar mutirões periódicos. Sem nenhuma máquina de radioterapia no país, a cirurgia torna-se a única chance de cura para a maioria dos pacientes.
Realizamos há poucos dias a terceira missão voluntária brasileira pela IHI desde 2018. Já foram quase 50 pacientes operados e um benefício real para essa população, que vive em verdadeiro desalento. Desde a primeira missão, desenvolvemos a ideia de treinamento de cirurgiões locais para que a continuidade do programa não se limite aos mutirões internacionais. Os primeiros dois haitianos em treinamento já executaram procedimentos oncológicos complexos de forma independente (sob supervisão) desta vez. Além disso, iniciamos a participação voluntária de estudantes de medicina brasileiros, e firmamos um acordo para futuras missões de cirurgiões e estudantes através do Capítulo do Paraná do Colégio Brasileiro de Cirurgiões.
Como essa população consegue então sorrir? O Haiti serviu de “reservatório de escravos” por diversos anos: navios negreiros deixavam as crianças na parte francesa da ilha e levavam seus pais para serem escravos na América do Norte. Estes (agora) órfãos permaneciam na ilha para crescerem e ganharem peso até que tivessem condições de trabalhar. A localização no Caribe fazia com que as subsequentes viagens fossem bem mais baratas que o transporte desde a África. Segundo país a declarar independência nas Américas, em 1804 (os Estados Unidos foram o primeiro), o povo haitiano preserva suas origens e cultiva a genuína alegria da liberdade. Apesar de tantas adversidades, a perseverança e bondade da população nos encantam e nos motivam.
Sem dúvida, manteremos este programa voluntariado como missão de vida, missão familiar e profissional. Todos são bem-vindos para ajudar. Toda doação é necessária. E é indescritível a gratidão ao ouvir “mesi, dok” (obrigado, doutor – em bom creole) a cada paciente operado.
* Dr. Phillipe Geraldo Teixeira de Abreu Reis é médico formado pela UFPR (2012), com títulos de especialista em cirurgia geral e cirurgia oncológica. Tem inscrição primária no CRM-PR (30.296) e secundária no Cremesp. Recém concluiu a terceira missão voluntária no Haiti e agora inicia projeto de pesquisa em Toronto, Canadá. (dr.PhillipeAbreu@gmail.com)
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