10/10/2016
José Alexandre Crippa
Em uma carta escrita do exílio para sua esposa Zélia Gattai, em março de 1949, Jorge Amado descreve uma turbulenta viagem de avião entre Paris e Praga. A narrativa é assustadora. “Estamos vivos por milagre”, dizia já no primeiro parágrafo. O voo saiu da capital francesa e três horas depois teve de descer em Frankfurt, pois um dos quatro motores estava falhando e o rádio não funcionava. Na descida, o avião por pouco não se chocou com outro que decolava, “por milagre”, repetiu. Sugerir novamente a violação das leis naturais já dava a ideia do tamanho do medo para um materialista convicto. Após três horas de espera e com o avião consertado, decolaram novamente. Mas não parou por aí.
Meia hora de voo, um grito anuncia fogo no outro motor do mesmo lado do que fora consertado. O piloto parou este motor, mas logo depois o motor que parara antes pifou de vez. Tiveram de voltar com apenas dois motores, voando baixo e de lado, sobre as montanhas entre a Checoslováquia e a Alemanha. “Foi uma meia hora dura, mas conseguimos aterrissar em Frankfurt outra vez”, escreveu, aliviado. No dia seguinte, Jorge Amado pegou outro avião que o deixou em Praga, de onde pôde escrever aliviado e seguro da escrivaninha do Hotel Flora, há poucos anos livre da ocupação nazista.
Quarenta e um anos depois, outro escritor, Gabriel García Márquez, também discorreu sobre o assunto, mas não de modo privado. Em um artigo confessional “Seamos machos: hablemos del miedo al avión”, de 1980, o escritor colombiano não só revela todo temor em voar de avião (“o único medo que nós, latinos, confessamos sem vergonha e até com um certo orgulho machista…”) como também entrega todos os seus amigos temerosos. Estão lá, Picasso, Miguel Otero Silva, Carlos Fuentes, Ruy Guerra, Luis Buñuel, Oscar Niemeyer e, claro, Jorge Amado. García Márquez chamava o escritor baiano de “um timorato aéreo” dos grandes, por ter tido a “audácia poética” de voar em um Concorde de Paris até Nova York, para ali pegar um navio até o Rio de Janeiro.
As fobias
Com o desenvolvimento da terapia comportamental foi possível distinguir a fobia social (medo de situações sociais quando observada por outros, como comer, beber ou falar em público), da agorafobia (medo de lugares abertos) e das fobias específicas (como o medo de altura, animais ou sangue). Costuma-se classificar cada fobia adicionando o sufixo fobia à sua palavra em latim ou grego. Assim, o medo de viagens aéreas é chamado de aerodromofobia ou aviatofobia, dentro de um diagnóstico de fobia específica.
O medo, muito mais do que a ansiedade, está associado a uma situação ou objeto com perigo real ou imaginário que nos leva a evitá-lo. A fobia, porém, difere do medo por alguns aspectos: temor excessivo e imensurável; esquiva do objeto ou situação temida; grande ansiedade antecipatória quando próximo da situação/objeto temido; ausência de ansiedade quando longe do objeto ou da situação temida.
A carta de Jorge Amado para Zélia encontra-se exposta no belíssimo memorial onde o casal de escritores morou, a Casa do Rio Vermelho, em Salvador, na Bahia. Assim, em busca da cópia da carta e da informação se o romancista tinha medo ou fobia de avião, liguei para a Sra. Maria João Amado, neta do escritor. Não tive mais dúvidas quando ela me disse: “Meu avô preferiria ir de navio, mas conheceu 98 países e quase todos de avião…”. “O verdadeiro medroso de avião não é o que se nega a voar, mas o que aprende a voar com medo”.
Nota: agradeço à Sra. Maria João Amado pelo envio da carta exposta na Casa do Rio Vermelho bem como por importante informação contida neste texto.
FIM
Artigo escrito pelo médico paranaense José Alexandre Crippa, Professor titular do Departamento de Neurociências e Ciências do Comportamento da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP-USP). Publicado na revista Veja em 09/10/2016.
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