07/08/2006

Médicos residentes estão no limite

Jornada exaustiva, falta de financiamento e orientação colocam sistema em xeque; residentes podem fazer greve



A residência médica é considerada a melhor maneira de formar especialistas no País. Mas atravessa uma crise. Uma conjunção de jornadas exaustivas, falta de financiamento, problemas de orientação e planejamento na abertura das vagas tem colocado em xeque a sustentabilidade desse sistema. E os residentes ameaçam parar no fim do mês.
A principal reivindicação é o reajuste da bolsa de R$ 1.490 que os 17 mil residentes brasileiros recebem - no mesmo valor há cinco anos - para cumprir uma carga horária oficial de 60 horas semanais, mas que na prática chega a 120. Sem contar os plantões que muitos fazem para complementar a renda.

Além disso, entram na lista de problemas a falta, em muitos hospitais, de médicos responsáveis, que deixam os recém-formados trabalhando sozinhos, e a dificuldade das comissões responsáveis em fiscalizar essas ocorrências. Na prática, ninguém nega que aconteçam, mas só programas muito ruins acabam sendo fechados.

A conseqüência aparece na qualidade do sistema de saúde, já que os residentes fazem parte de uma elite - mais da metade dos formados em Medicina não consegue entrar em uma vaga de especialização - e serão os cardiologistas, ginecologistas, cirurgiões, oncologistas e pediatras que em poucos anos estarão conduzindo consultórios e hospitais públicos e privados.

"O médico que se especializa vai atender nos hospitais e a acaba sendo usado como política assistencial e não de ensino. É mais barato pagar a bolsa do que contratar um médico já qualificado", afirma Diogo Sampaio, residente de anestesiologia e presidente da Associação Nacional dos Médicos Residentes. Foi a associação que definiu o dia 24 como data para uma paralisação geral, que pode ser seguida de uma greve. A última vez em que eles pararam foi em 2000. Ficaram sem trabalhar por dois meses. No ano seguinte, conseguiram o reajuste.


70% DO ATENDIMENTO

Quando param, os hospitais param junto. Dados do Conselho Federal de Medicina mostram que, nas instituições com residentes, eles são os responsáveis por 70% do atendimento à população.

Pela importância, a discussão já chegou à Comissão Nacional de Residência Médica (CNRM), ligada ao Ministério da Educação (MEC). Mas lá encontrou um impasse: se o reajuste de 30% pedido - uma correção pela inflação no período - for concedido, as secretarias de Saúde, que pagam grande parte das bolsas, acabarão fechando programas por não ter como arcar com os custos.

"O problema é que o reajuste não depende só do MEC, que é favorável. As secretarias de Saúde precisam chegar a um consenso. Se concedemos o aumento, isso vira lei e todos deverão seguir. Se eles não conseguirem pagar, vão fechar vagas, o que não pode acontecer numa época em que a procura é grande e precisamos de mais bolsas", explica o médico Antônio Carlos Lopes, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e presidente da CNRM.

A preocupação faz sentido. Das 17 mil bolsas registradas, o ministério é responsável por 4,5 mil. Secretarias estaduais respondem por cerca de 7,5 mil (o Estado de São Paulo paga sozinho 4,5 mil bolsas), secretarias municipais têm cerca de 1,5 mil e o restante está dividido em instituições particulares.

O peso dos Estados e sua falta de representação na comissão nacional são também entraves para o sistema. "Os principais financiadores não participam da comissão", diz Paulo Seixas, do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e da Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo. "Por exemplo, não temos como incluir um reajuste de 30% de um ano para outro", afirma.

Enquanto os próprios gestores tentam se entender, o cotidiano dos residentes se complica. "A residência tem um método pedagógico ligado ao ensino prático, mas há uma pedagogia da perversão. Um regime injusto em relação ao residente e irresponsável em relação ao paciente", afirma Gastão Wagner de Souza Campos, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e ex-secretário-executivo do Ministério da Saúde.

"Na área de cirurgia, temos escravos residentes que estão trabalhando 100 horas. São transformados em mão-de-obra barata", diz José Antônio Romano, da Comissão de Residência Médica do Rio. No Estado, residências de hospitais grandes já foram fechadas por falta de supervisão, como o serviço de oftalmologia do Miguel Couto. No mesmo ano, por outros problemas, o programa de clínica médica do Souza Aguiar, a maior emergência do País, também foi suspenso, assim como a cardiologia do Hospital do Andaraí.

Plantões seguidos minam capacidade de raciocínio
O excesso de trabalho, que ultrapassa em quase todos os hospitais as 60 horas semanais estabelecidas na lei federal que define a residência médica, tem efeitos práticos, segundo uma pesquisa feita na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). Um grupo de professores apresentou uma série de tarefas para os residentes antes de um plantão de 12 horas e observou seu desempenho. O mesmo exercício foi proposto depois, período no qual em sua rotina normal eles continuam trabalhando, já que emendam um plantão no outro.

O resultado foi um tempo três vezes maior para chegar aos mesmos resultados. "Isso, num atendimento em que eles devem fazer diagnóstico, decidir procedimentos e tomar decisões, mostra que poderiam colocar vidas em risco", diz Maria do Patrocinio Tenorio Nunes, professora da USP e conselheira do Conselho Regional de Medicina de São Paulo.


Fonte:O Estado de S.Paulo - 06/08/2006

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