11/01/2016

Médicos recusam empregos oferecidos por prefeituras e estados

Recusa para assumir postos de trabalho chega a 63% dos aprovados em concursos

Conseguir um emprego público é algo cobiçado no Brasil. Interessados enfrentam filas, submetem-se a provas concorridas e, quando aprovados, contam os dias para a convocação. Mas esse ritual, conhecido da maioria do funcionalismo, não tem se aplicado a uma carreira em especial: a de médico. Nesse caso, a recusa em assumir um emprego oferecido por prefeituras ou governos estaduais chega a 63% dos aprovados em concurso público. Os maiores índices estão justamente nas grandes capitais - São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre e Rio de Janeiro - e no Distrito Federal.

Precárias condições de trabalho, salários pouco competitivos, falta de plano de carreira e demora na convocação são os fatores apontados para o desinteresse em vagas na rede pública. No município de São Paulo, o salário para 20 horas semanais é de R$ 6 mil; no DF, de R$ 7 mil.

Dois em cada três médicos que foram convocados nos últimos anos para trabalhar em unidades das prefeituras de São Paulo e Belo Horizonte recusaram o emprego. Na capital paulista, dos 1.275 médicos chamados, 809 (63,5%) não quiseram o cargo. Na capital mineira, o índice é parecido, 63,3%. No Rio e em Porto Alegre, os números são menores, mas ainda assim representam mais da metade dos selecionados - respectivamente, 55,3% e 58,8%.

Com a pior performance, São Paulo prepara uma nova seleção este ano para o preenchimento de 1.090 vagas para pediatras, ginecologistas, clínicos gerais e anestesistas, entre outros - áreas de maior demanda e carência da rede pública. Enquanto isso, do outro lado do balcão, quem depende do SUS espera de 30 a 90 dias por uma consulta com um clínico geral. Quando vai a um pronto-socorro, a fila para o atendimento pode chegar a cinco horas.

A crise na Saúde é crônica e generalizada no país. As dificuldades econômicas de 2015 apenas tornaram o quadro mais agudo e expuseram as deficiências de um sistema que agoniza há tempos. A situação mais grave é a do Rio de Janeiro, que enfrenta o fechamento de hospitais por falta de recursos e funcionários. O governo fluminense admitiu ter dívidas que somam R$ 1,4 bilhão com fornecedores e, na semana passada, repassou dois hospitais - Albert Schweitzer e Rocha Faria - à prefeitura.

Outro local preocupante é o Distrito Federal, que tenta reverter a dispensa de pacientes em seus hospitais. Além de um déficit de cerca de mil médicos, o governo está às voltas com equipamentos sucateados. No principal hospital de Brasília, o Hospital de Base, os dois tomógrafos estão quebrados, e a promessa é que um deles volte a funcionar esta semana.

Para entender o ritmo com que tem se dado a contratação de médicos por prefeituras e estados, O GLOBO pediu às principais secretarias de Saúde das cinco regiões um balanço das nomeações dos últimos concursos. Nos estados, esse mapeamento mostrou-se mais complicado por causa da terceirização dos hospitais. Governos alegaram não ter dados das contratações pelas entidades gestoras.

Para Gonzalo Vecina Neto, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP, o alto índice de recusa de emprego público por médicos está relacionado à demora na convocação.

- A administração pública vive ainda no começo do século XX. Quem presta um concurso quer começar a trabalhar logo. Não quer esperar seis meses, um ano - diz Vecina, secretário municipal de Saúde de SP em 2003 e 2004.

Na sua gestão, uma seleção para preencher 2 mil vagas teve apenas 1,2 mil inscritos, só 200 assumiram.

O presidente do Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp), Braulio Luna Filho, atribui a uma lista maior de problemas o desinteresse da categoria.

- Não é questão de atender um ou dois itens. Se você não der condições de trabalho, salário de mercado e segurança, você não fixa o médico. Nem a terceirização da Saúde, que virou moda, conseguiu resolver isso - defendeu.

Na avaliação de Luna Filho, a origem da crise da Saúde está no financiamento da área.

- O setor público investe cerca de 2,5% do PIB para atender 160 milhões de pessoas, enquanto o privado investe 7,5% para atender 50 milhões de pessoas. Tem alguma coisa errada nisso - afirmou ele.

Uma pesquisa do Cremesp divulgada em novembro passado mostrou que a rede privada tem hoje 20 mil médicos a mais do que a pública. São 399.692 médicos no país. Desses, 27% (107 mil) atuam exclusivamente em entidades particulares; 22% (87 mil), nas unidades públicas; e 51% (203 mil), em ambas as esferas.

- Vivemos um tempo diferente. Na rede pública, não há mais perspectiva de carreira. Um médico que trabalha contratado por uma organização social ou na rede privada recebe mais que um concursado. Desprezar isso é ignorância - avalia Vecina Neto.

O Brasil tem cerca de dois médicos para cada mil habitantes. Mais da metade deles (55%) concentra-se nas capitais, onde vivem apenas 23% da população.

Em algumas capitais, a saída encontrada para reduzir o déficit foi a contratação emergencial.

- Foram mais de 20 chamadas dos aprovados, mas não conseguimos preencher as vagas. A carga horária e o deslocamento para regiões periféricas foram o que mais dificultou - disse a diretora de Atenção Básica da prefeitura de Salvador, Luciana Peixoto.

Salvador recorreu ao programa federal Mais Médicos e a contratações temporárias para cobrir o buraco. O mesmo fez BH, que optou por chamamento público para preencher 779 vagas.

Em Belém, a busca se mostra ainda mais árdua. A prefeitura abriu uma seleção em 2012 para recrutar 702 médicos, mas apenas 28 candidatos foram aprovados. "Dois recusaram por questões salariais", informou a Secretaria de Saúde. Na capital, o déficit de médicos (433) é mais da metade do total na ativa (685).

Na maioria dos governos consultados pelo GLOBO, houve falta de transparência sobre o déficit de médicos em suas respectivas redes de Saúde. Das 20 secretarias de Saúde (estadual e municipal) procuradas, apenas seis informaram quantos profissionais estão em falta. Foram elas: as prefeituras de Rio de Janeiro, Belém, Manaus e Cuiabá, além dos estados de Minas Gerais e Pará.

Nos demais estados, as justificativas apresentadas foram desde a dificuldade de obtenção de dados por causa da rede descentralizada até casos de reorganização do sistema. A Secretaria estadual de Saúde de São Paulo, por exemplo, informou apenas o número de médicos contratados desde 2011: um total de 4.956.

Com mais de três anos de governo, a prefeitura de Curitiba comunicou que está "estimando" a falta de médicos.

A secretária de Saúde em exercício da cidade de SP, Célia Cristina Bortoletto, disse que o próximo concurso deve despertar maior interesse da classe médica, porque a prefeitura criou um novo plano de carreira com melhores salários:

- Temos uma condição melhor, com salários equivalentes aos pagos em OSs (organizações sociais) e rede privada. Isso deve contribuir na procura de médicos em relação ao nosso concurso.

Sobre a demora no agendamento das consultas nos postos, ela afirmou que, este mês, duplas de funcionários da secretaria visitarão unidades de Saúde para organizar o atendimento.

- Nenhum paciente deve sair sem ser acolhido - promete a secretária.

Sobre a demora na UPA Campo Limpo, a prefeitura de SP disse que havia quatro médicos pela manhã.

A secretária adjunta de Saúde do Distrito Federal, Eliene Berg, disse que a solução virá aos poucos. Sobre a dificuldade em contratar médicos, Eliene afirmou que o setor público tem que lidar com um "concorrente de peso":

- Na próxima semana, faremos nova chamada de médicos. Serão anestesistas, clínicos gerais e cirurgiões. Aos poucos a gente vai organizando.

As prefeituras de Rio, Belo Horizonte e Porto Alegre não se manifestaram.

Ao contrário do cenário de evasão de médicos dos sistemas públicos municipais e estaduais, o programa Mais Médicos conseguiu preencher as vagas abertas no último ano apenas com médicos brasileiros. Foi a primeira vez, desde a criação do programa, em 2013, que nenhum profissional estrangeiro foi chamado. Embora não sejam maioria entre os quadros - os cubanos ocupam mais de 11 mil postos de um total de cerca de 18 mil -, os brasileiros formados aqui ou no exterior começaram a ser atraídos por uma combinação de ações do governo federal. Além da bolsa de R$ 10 mil mensais, os recém-formados em Medicina que aderem ao programa recebem 10% de bônus nas provas de residência desde que se mantenham por um ano em seus postos.

- Foi o que mais me atraiu para o programa. No ano passado, eu tive uma pontuação boa. Se tivesse contado com o bônus, teria passado - diz o médico Rafael Soares, que atua há quase um ano no Capão Redondo, em São Paulo.

Segundo Soares, a resistência dos brasileiros diminuiu conforme o governo aprofundou diálogos com entidades de classe:

- No começo, o programa não deu espaço para os brasileiros, não quis ouvir o nosso medo de trazer médicos sem revalidar o diploma, sem conhecimento das condições brasileiras. Com o tempo, isso melhorou, e a gente passou a se interessar.

Em 2013, entidades como a Associação Médica Brasileira (AMB), a Associação Nacional de Médicos Residentes (ANMR), o Conselho Federal de Medicina (CFM) e a Federação Nacional dos Médicos (FNM) fizeram críticas ao programa e avaliaram como "irresponsáveis" a vinda de médicos estrangeiros sem aprovação no Revalida, exame de revalidação de diploma. As entidades também fizeram críticas ao aumento do número de vagas em escolas médicas "sem qualidade". Segundo elas, as medidas anunciadas não observavam "a cautela imprescindível ao exercício da boa medicina".

O programa oferece algumas vantagens para os profissionais de saúde. O regime contratual do Mais Médicos prevê benefícios previdenciários, férias e 13º salário, condições incomuns para médicos contratados sem concurso público por prefeituras e governos dos estados.

- Existem muitos contratos precários, sem garantia. Se a médica fica grávida, não tem direito à licença maternidade, enquanto no Mais Médicos isso está assegurado. E há ainda o temor de que os governos locais não paguem os salários, os médicos preferem ter o governo federal como pagador - afirma Heider Pinto, secretário de Gestão do Trabalho, Educação e Saúde do Ministério da Saúde, responsável pelo programa.

Profissionais que aderem ao Mais Médicos são automaticamente inscritos em um programa de pós-graduação de Saúde da Família em alguma universidade federal brasileira. Cada médico é orientado por um professor supervisor e tem que desenvolver um projeto de atenção básica à saúde.

- Esse é um diferencial enorme porque eu não estou só trabalhando, estou melhorando meu currículo. Há falta de planejamento da carreira no serviço público, você se sente estagnado, fica para trás - diz Soares, que tem desenvolvido uma pesquisa de estratégia de atendimento para os quatro mil pacientes que monitora na periferia paulistana.

De acordo com o Ministério da Saúde, o programa possui baixa evasão (apenas 4,7%). O índice é ajudado pela presença dos profissionais cubanos, que são empregados pelo governo daquele país e raramente desistem de seus postos de trabalho. A taxa de desistência entre os brasileiros no programa é de 13%, inferior aos 20% de evasão da rede pública no setor de atenção básica.

O desafio atual é manter os profissionais brasileiros por mais de um ano. Dois terços dos brasileiros que ingressaram em 2015 assinaram contrato de apenas 12 meses, tempo curto para uma política pública que objetiva a prevenção e o acompanhamento familiar pelo médico.

Fonte: O Globo

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