27/10/2008
Médicos debatem relação com empresa
Novas regulamentações focam a atuação de profissionais em eventos e pesquisas de fabricantes de remédio
Novas regulamentações em discussão ou em implantação no Brasil e nos Estados Unidos estão buscando trazer alguma ordem
nas relações entre médicos e fabricantes de medicamentos. A proposta é debater a distribuição de brindes, almoços, viagens
e outros presentes de fabricantes com o objetivo de evitar impacto indevido das benesses sobre a receita.
Em meio ao debate, os próprios médicos que atuam como porta-vozes (speakers) das empresas em lançamentos de estudos e
produtos ou aqueles que se destacam como conferencistas em eventos das farmacêuticas fazem uma defesa de seu trabalho, mas
também pedem mais controle e transparência para a relação, até para evitar mal-entendido.
"Congresso médico é ciência, não vejo nada de errado (o laboratório farmacêutico) levar o médico ao congresso. Não concordo
é em levar a esposa do médico ou o congresso em Paris ser de um dia e o médico ficar dez dias. Nem tanto ao mar nem tanto
à terra", resume o urologista Luiz Otávio Torres, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Urologia, que já realizou pesquisas,
conferências e concedeu entrevistas como speaker de diferentes empresas farmacêuticas. "Acho sim que deveriam ser estabelecidas
regras."
Nenhum profissional concordou em revelar à reportagem do Estado o total dos rendimentos obtidos por meio dos serviços
prestados à indústria. Alguns justificaram que preferiam manter a privacidade, outros que não gostariam de ser os únicos a
se expor, em meio a um sem-número de profissionais que prestam os serviços. Outros afirmaram não lembrar ou não saber exatamente
os valores.
A atividade de speaker, conferencista e consultor não é ilegal, assim como aceitar presentes. Há, porém, o debate da questão
ética, que passa pela influência que os presentes podem ou não ter sobre o tipo de atendimento prestado ao paciente. Recentemente,
o caso de um médico que recebia por palestras e outros serviços para a indústria farmacêutica acabou na polícia após autoridades
apontarem que ele teria prescrito remédios das mesmas empresas que o patrocinavam sem que alguns pacientes necessitassem.
Além disso, há relatos em periódicos científicos de casos em que o financiamento de pesquisas incorreu em resultados fantasiosos,
apesar de grande parte dos trabalhos contribuir para o avanço das terapêuticas.
Reynaldo Ayer, conselheiro do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, recorda que as parcerias entre médicos
e indústria começaram com romantismo, como incentivo à difusão do conhecimento de nomes renomados da academia, até chegarem
a profissionalização e abusos. "Temos de fazer um capítulo do nosso código de ética sobre a relação com a indústria, temos
de ter a coragem", disse.
A primeira regulamentação específica sobre o tema no Brasil, no entanto, veio da própria indústria, que não divulgou ainda
os possíveis infratores das novas normas.
Nos EUA, 94% estão ligados a laboratórios
Médico americano recebe até alimento; brasileiros defendem relação ética
No Brasil não há dados sobre a relação médicos-indústria farmacêutica, mas pesquisa realizada nos Estados Unidos e publicada
no ano passado no New England Journal of Medicine apontou que 94% dos profissionais do país tinham algum tipo de relação com
a indústria. A mais comum era o recebimento de alimentos no local de trabalho, mas 28% ganhavam por palestras e consultorias.
Conferencista em eventos da indústria e convidado em congressos, o endocrinologista e professor titular da Unifesp Antônio
Chacra diz aceitar cada vez menos convites por falta de tempo e que vê com preocupação o financiamento de médicos inexperientes.
"Em determinada fase, é uma maneira de difundir assuntos. A educação médica continuada tem sido feita pela indústria,
tendo em vista que os simpósios são caros e as sociedades médicas não têm recursos para organizá-los. Os conferencistas devem
ser principalmente os acadêmicos, mas infelizmente o que se vê é que têm sido chamadas pessoas sem uma análise crítica", afirma
o professor. Ele diz ser a favor de novas regras para a interação com a indústria, a mesma posição da colega Carmita Abdo.
"Eu sempre pude divulgar dados levantados e aceitamos apoio de todos os tipos de indústria", diz a psiquiatra, que coordena
projeto no Hospital das Clínicas da USP e foi chamada pela indústria para apresentar nos últimos anos diferentes estudos sobre
sexualidade. "Existem jantares, não vou dizer que não vou. Mas meu diferencial é que falo do assunto, não do remédio."
"Ética não é elástica nem varia de acordo com a situação", diz a cardiologista Jaqueline Issa, speaker de remédio contra
o fumo que não concorda com novas regras. "Essa regulação parte do princípio de que o médico não é ético", diz ela.
As normas
Código: O código de ética dos médicos brasileiros, que tem 20 anos de vigência, veta a interação financeira entre médicos
e indústrias ou farmácias. Em resumo, nenhum profissional pode receber recursos para receitar. A infração dessa regra sujeita
o profissional às punições previstas pelos conselhos de medicina.
Revisão: Atualmente o código de ética dos médicos passa por revisão. Há quem defenda o veto a qualquer tipo de presente
da indústria para os profissionais - o recebimento seria considerado infração ética. O novo texto só deverá ficar pronto no
próximo ano.
Conflito de interesse: Segundo regra do Conselho Federal de Medicina, na apresentação de trabalhos científicos o médico
deve declarar eventuais conflitos de interesse, ou seja, se ele foi patrocinado por alguma indústria do setor farmacêutico.
Discussões: Seguidos debates sobre a relação médico-paciente têm sido patrocinados pelas entidades médicas. Durante simpósio
em 2004 em São Paulo, profissionais defenderam que o vínculo universitário era incompatível com a prestação de serviços à
indústria, exceto em casos de pesquisas com real interesse acadêmico.
Indústria: As empresas farmacêuticas multinacionais se anteciparam às conclusões desses debates e lançaram um código de
ética próprio em maio deste ano. O texto prevê penalidades que passam de R$ 1 milhão para quem desrespeitar regras como a
que veta o pagamento pelas empresas de viagens aéreas na primeira classe para os médicos.
Resultados: Segundo a indústria, a auto-regulamentação já gerou denúncias, mas a Interfarma, entidade que reúne laboratórios
multinacionais, não divulgou quem são os possíveis infratores.
Nos Estados Unidos: Tramita no Congresso norte-americano o Physician Payments Sunshine Act, proposta para que, a partir
de 2011, as farmacêuticas tenham de abastecer um banco de dados público sobre repasses a médicos que superem o limite de US$
500 (aproximadamente R$ 1.160) anuais, sob risco de imposição de penas de mais de US$ 200 mil (cerca de R$ 400 mil). Diante
da pressão, algumas farmacêuticas prometem já revelar gastos a partir do ano que vem, mas somente nos Estados Unidos.
Ainda nos EUA: Alguns Estados, como Minnesota, já obrigam que os pagamentos sejam públicos.
Resorts e viagens de 1ª classe são vetados
Normas fazem parte de código de ética lançado neste ano no Brasil pelas farmacêuticas
As indústrias farmacêuticas multinacionais que atuam no Brasil concluíram no início deste ano um novo código de ética
que impede o patrocínio de brindes para médicos acima de um terço do salário mínimo (R$ 138 atualmente), viagens em primeira
classe e financiamentos de discussões científicas em locais excessivamente turísticos, como resorts.
As normas foram criadas em maio deste ano e já estão disponíveis no site da Interfarma. São previstas penalidades de até
R$ 1,6 milhão, de acordo com a infração ética.
Segundo a assessoria de comunicação da entidade, chegaram denúncias de desrespeito ao novo código, mas, questionada, a
Interfarma informou que só o presidente do órgão, Gabriel Tannus, poderia dar informações sobre possíveis infratores.
Procurado desde a última quinta-feira à noite, Tannus não respondeu os contatos feitos pela reportagem. A auto-regulamentação
também é uma preocupação de outros setores industriais. No País e em outros locais do mundo essas regras têm sido criadas,
revisadas ou aperfeiçoadas sempre que há possibilidade de autoridades endurecerem as normas de determinado negócio.
A Interfarma destacou, no entanto, que a entidade criou o regulamento antes mesmo de os médicos iniciarem a discussão
de um novo código de ética.
Fonte: O Estado de São Paulo