21/10/2014

Médicos

Jairo Marques

Ortopedistas costumam usar de pouco rodeio em seus atendimentos. Quebrou o pé, bota o osso no lugar, imobiliza, toma um Lisador de tantas em tantas horas, tchau, de nada. O doutor Nascimento era desses durões, mas penso eu que escondia flores, fotografias de família e mensagens de prosperidade nos bolsos.

Eu era menino e cheguei às mãos dele totalmente avariado. As pernas pareciam ganchos devido às atrofias, a coluna simulava o “s” do Senna e o meu destino como “serumano” era uma incógnita.

Lentamente, o médico consertou  meu esqueleto, dando sustância a minha alma e me aprumando para a vida, nutrindo em mim a coragem de tentar ficar em pé ou de me realizar em outra perspectiva, sentado.

“O que importa, de fato, é a maneira como ele vai poder construir a felicidade. Ele jamais vai conseguir andar por conta própria, mas isso não vai impedi-lo de ser quem ele quiser”, disse ele a minha mãe em minha última consulta.

Por mais que não queiram, médicos trazem consigo, apenas com a sua presença e suas palavras, um possível alívio para a sensação de desespero, um alento para tempos difíceis, uma chance de acalmar a rebeldia dos males que parecem querer afogar as esperanças.

Minha avó Florisbela, que peguei emprestada para sempre de minha mulher, caiu no banheiro na semana passada e quebrou o punho e o quadril. Faz uns dias, também está meio zureta das ideias.

O povo lá de casa ficou em frangalhos com a avozinha machucada e tudo o que queria era um afago menos derrotado do médico: “Não há muito o que fazer. Levem para casa e a mantenham em repouso”.

Mas o que vai tratar as dores da dona Flor? Como ela pode ficar mais à vontade? Ela tem permissão para comer jujuba e feijoada aos sábados? Osso de velho não cola mais, mas um esparadrapo pode ajeitá-la um pouquinho no coração?

Bebês que nascem com deformidades, pai e mãe já imaginam os perrengues a enfrentar, o choro a ser chorado. Mas é o médico o cabra capaz de ajudar a acender uma lamparina que fará serem enxergados novos caminhos nas diferenças.

Quem descobre um câncer, uma doença avassaladora ou uma moléstia incurável, só com pouquíssima informação irá buscar o milagre ou o elixir da cura imediata. Mas vai desejar ouvir histórias bem-sucedidas de conviver com as perdas e saber que poderá mergulhar em piscina de bolinhas de plástico, ir a mais alguns shows do rei ou reler deitado na rede as poesias de Cecília Meireles.

A palavra da moda em medicina atual, em hospitais de ponta, é “humanização”, cujo conceito é mais ou menos o ambiente e o próprio “seu dotô” servindo e amparando o paciente além do alcance científico e técnico, mas também com algum cuidado emocional e com a atenção de um abraço, de olhos nos olhos.

Do lado de cá do bisturi e do estetoscópio, acho o movimento importante, embora avalie que seja árdua a tarefa de ensinar ser humano, algo que se deveria ter começado a incentivar desde o berço.

Como escutei pela TV de uma médica do Einstein, Juliana Fernandes, que se dedica a auxiliar crianças debilitadas por doenças agressivas, em cada um dos pequenos “há uma parte” dela mesma sendo depositada. Que seja sempre a melhor parte.

Artigo escrito por Jairo Marques, publicado no jornal Folha de S. Paulo desta quarta-feira, 22 de outubro.

*As opiniões emitidas nos artigos desta seção são de inteira responsabilidade de seus autores e não expressam, necessariamente, o entendimento do CRM-PR.

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