15/10/2005

Médico não é criminoso


Cada profissão tem a sua peculiaridade e, ao se formar, todos nós fazemos um juramento baseado nos princípios de uma determinada atividade. No caso dos médicos, o juramento, em suma, é de respeitar e priorizar a vida humana. Tais profissionais se qualificam no intuito de salvar vidas a qualquer preço, usando todo o seu conhecimento e recursos para tal. Mas, infelizmente, nem sempre é possível, pois o milagre da vida é de dominância divina. Considerá-los criminosos quando não conseguem evitar a morte de um paciente é um golpe duro demais para quem segue eticamente o seu legado.

Certamente, em cada área temos os maus profissionais e os charlatões, que merecem todo o rigor da lei. Mas precisamos ficar atentos e separar o joio do trigo, pois se toda vez entendermos que a morte de um paciente se deu não porque tinha que acontecer, mas porque o médico foi o culpado, submetendo-o aos rigores do Código Penal Brasileiro, correremos o risco de cometer grandes injustiças.

Por força da profissão, temos lidado com os médicos que estão tendo esse dissabor de se verem processados pelo crime de homicídio. Não são muitos, graças a Deus, porém, uma análise é preciso que seja feita, pois, assim como nas ações indenizatórias (responsabilidade civil médica), estamos observando um certo desvio na forma de alguns interpretarem a conduta médica e, erroneamente, na maioria das vezes por emoção, colocá-la como supostamente enquadrada num tipo penal.

A morte é inexorável. É a mais implacável certeza do homem. Entretanto, pode-se dizer, paradoxalmente, que os seres humanos jamais se preparam para ela. É bem verdade que não se costuma ver cirurgiões oncológicos ou cardíacos serem processados na justiça pelo crime de homicídio, pois de alguma maneira e por alguma razão óbvia, o parente que fica não consegue encontrar lógica para sustentar tal pretensão. E nessa linha de raciocínio vão também a autoridade policial e o Ministério Público. Mas se a morte advém após uma cirurgia bariátrica (redução de estômago em obeso mórbido), por exemplo, um sentimento poderoso de vingança parece se instalar quase que instantaneamente.

O Brasil precisa evoluir para esclarecer o que a Cirurgia Bariátrica é para os obesos mórbidos. Tratar os cirurgiões como criminosos seria a absurda hipótese de condenar a todos, pois as mortes, lamentavelmente, são contadas em frios e indesejados números estatísticos, tal o grau de risco.

Devemos alertar a sociedade que, ao nosso ver, o médico não pode ou não deveria sofrer o processo criminal, sobretudo por homicídio, sem uma filtragem mais rigorosa, técnica e ética e sem um juízo rigoroso prévio de admissibilidade. No caso da cirurgia bariátrica, por exemplo, o paciente permanece em UTI, no pós-imediato, afastando a possibilidade de se alegar destrato ou falta de atenção, devendo-se lembrar que em qualquer procedimento cirúrgico a reação do organismo é variável a cada pessoa e relevante para a recuperação.

Para um médico, ser processado por homicídio em razão da morte de seu paciente é sofrer um peso maior do que pode carregar. Porém, perceber que a busca pela sua condenação, por vezes, percorre um caminho passional, tentando vincular a ele todos as supostas ilicitudes que, inclusive, não estão sob sua responsabilidade, é maior do que o sofrimento. É uma quase-morte.


Antônio Ferreira Couto Filho, presidente da Comissão de Biodireito do Instituto de Advogados Brasileiros e consultor jurídico do Colégio Brasileiro de Cirurgiões

Fonte: Jornal do Brasil - 23/01/2007

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