04/07/2007

Medicina e negócio


É preciso tratar o brasileiro com a necessária seriedade




O exercício da medicina requer o sigilo como base inerente da ética. Por questões lógicas e de coerência, tal princípio devia aplicar-se a todas as profissões em que o foco principal centra-se no ser humano. O segredo, portanto, não é obrigação tão-somente do médico examinador ou do padre confessor. O médico executa o preceito com precisão. O exame médico é realizado por meio de histórias (anamnese), que são conferidas pelos achados clínicos (exame físico), que se somam racionalmente para a hipótese diagnóstica. Sem qualquer quebra de sigilo, o médico pode conversar sem sobressaltos sobre o atendimento realizado. Quando quer falar do exame, refere-se ao "caso"; quando precisa falar do paciente, refere-se às suas iniciais. Pronto, situação resolvida, segredo inviolável. A partir daí, abre-se a questão, já não é só medicina, vira negócio. Pedido de exame na mão, não raro o próprio paciente é o primeiro a expor os seus segredos, bem guardados no consultório.

E o negócio, para cerca de 50 milhões de brasileiros, é regido por contratos, que têm o mesmo teor de qualquer objeto de contratação de serviços. Não há como, portanto, resguardar-se o sigilo dos procedimentos solicitados. No caso dos planos de saúde, em especial, a finalização desse processo implica obrigatoriamente na apresentação das contas pelo prestador, a fatura. Alguém pagaria esta conta sem que nela constassem detalhamentos incontestáveis do usuário (paciente)? É impensável, tanto quanto inaplicável, querer que um médico estivesse em cada estação desse complicadíssimo processo. Para tal, ele teria que ser também recepcionista, telefonista, executor de todos os exames laboratoriais, conferencista das extensas contas de cobrança e, finalmente, pagador da fatura.

Assim considerando, percebe-se que o entrechoque criado pela Agência Nacional de Saúde Complementar (ANS) e o Conselho Federal de Medicina (CFM) em nada contribui para a melhoria das relações entre as partes envolvidas no atendimento médico. Ao contrário, suscita incontrolável insegurança e acirra ainda mais os ânimos, com indelével prejuízo para aquele a quem todos deveriam melhor servir: o paciente. A ANS e CFM estão se defrontando como se tudo isso fosse grande novidade. O Sistema Único de Saúde (SUS) e todo o sistema de medicina do trabalho utilizam rotineiramente em suas guias, há quase duas décadas, além da identificação nominal do paciente, a mesma classificação internacional de doenças (CID), exigida pela ANS e proibida pelo CFM. Para 130 milhões de descamisados pode, para os 50 milhões de privilegiados, não?

É preciso tratar o brasileiro com a necessária seriedade, sem colocar em primeiro lugar as vaidades pessoais e os interesses corporativos. O Congresso Nacional, os conselhos federais e as agências reguladoras deveriam encabeçar esse propósito, primando pela ética na sua conduta. Deixem o sigilo para os médicos e outros profissionais que lidam individualmente com o ser humano. Parem de utilizar a desculpa do sigilo para inibir a transparência com que devem lidar com o coletivo, o interesse público, bem maior e inviolável da população.

Dirceu Wagner Carvalho de Souza é Médico

Fonte: Estado de Minas (MG)

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