A médica curitibana Maria Fernanda Sanches Soares (CRM-PR 17.817) tinha ainda 16 anos quando enfrentou a decisão mais importante de sua vida até aquele momento: a escolha da profissão. Apesar de pertencer a uma família em que a Medicina era tradição, a carreira não estava entre suas preferências. “Não queria ser médica, nunca considerei minha primeira opção”, revela a patologista formada pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) em janeiro de 2000.

Com interesse especial pela área tecnológica, ela acabava de concluir o segundo grau no antigo Centro Federal de Educação Tecnológica do Paraná (CEFET/PR). Foi nesse momento que um conselho muito especial a ajudou a enxergar novas possibilidades dentro da área médica, as quais abarcariam não apenas sua afinidade com as ciências exatas, mas também a oportunidade de ajudar outras pessoas com o seu conhecimento.

“Quando chegou a época do vestibular, meu pai sugeriu a Medicina, por entender que se tratava de uma profissão que poderia acomodar diferentes tipos de personalidades e preferências dentro das muitas especialidades existentes”, lembra. E o que foi inicialmente uma “aposta” de carreira tornou-se paixão: hoje, Dra. Maria Fernanda é médica patologista renal do Departamento de Patologia Celular do Hospital John Radcliffe, vinculado à rede de hospitais da tradicional Universidade de Oxford, na Inglaterra, e pertencente ao sistema público de saúde britânico, o National Health System (NHS).

Interesse pela Patologia

Quando ainda era criança, uma cena comum que vem à memória dessa patologista curitibana é a de estar dentro do carro de seu pai – Dr. Hélcio Bertolozzi Soares, ginecologista e obstetra – e notar muitos materiais que, mais tarde, fariam parte de sua rotina de trabalho: “Havia muitos potinhos, etiquetas, envelopes de exames anatomopatológicos e aquilo me causava muita curiosidade.” Ela conta ainda que, na época, quem dava suporte a seu pai com todos aqueles exames eram profissionais como o Dr. Affonso Coelho, o Dr. José Fillus Neto e a Dra. Zênia Maria Pastorello Scarpari, todos professores da UFPR.

“Meu pai tinha um microscópio no consultório dele, até hoje o tem, e a primeira coisa que eu fazia quando o visitava no trabalho era ir até lá e olhar alguma coisa que ele mostrava”, recorda. Alguns anos depois, já cursando a faculdade de Medicina, as matérias de Histologia e Patologia eram as com que ela mais se identificava. Além disso, muitos dos médicos patologistas que conhecera na infância eram, agora, seus professores.

Na sequência de sua formatura, a Dra. Maria Fernanda iniciou a residência em Patologia pelo Hospital de Clínicas da UFPR. Foi colega de residência de outro paranaense retratado nesta série, o Dr. Jorge Sergio Reis Filho. “Tenho muita gratidão por tudo o que ele fez por mim nos anos de residência, foi uma amizade muito boa”, recorda-se. No final de 2002, quando estava a seis meses de finalizar o curso, Dra. Maria Fernanda teve a oportunidade de realizar um estágio de observação no Departamento de Patologia da Universidade de Miami, sob a supervisão do médico Phillip Ruiz.

De volta ao Brasil, ela concluiu a residência, obtendo, posteriormente, o título de mestrado em Microbiologia, Parasitologia e Patologia pela UFPR, e o doutorado em Patologia pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), onde teve a oportunidade de conhecer um de seus maiores mentores: o Professor Marcello Fabiano de Franco (falecido em 2017). “Era a pessoa em quem mais confiava para discutir algum caso difícil, alguma dúvida ou inquietação”, ela lembra. “Foi um grande mentor e amigo.”

‘Sensação de inquietude’

No final de 2008, quando estava terminando a fase de experimentação do doutorado, a patologista retornou a Curitiba. Nessa época, começou a atuar em laboratórios privados de análises citopatológicas, junto aos Drs. Antonio de Padua Gomes da Silva e José Ederaldo Queiroz Telles, outrora seus mentores na UFPR, e também no Instituto Médico Legal (IML) do Paraná. Em 2011, conquistou uma vaga para se tornar professora de Medicina na UFPR, um de seus grandes sonhos.

Ao longo de três anos, ela ministrou quatro disciplinas do Departamento de Patologia. “Tenho muito carinho e gratidão pelo meu Departamento e ex-alunos”, afirma. E o sentimento parece ser recíproco. “Tive o prazer de ser seu aluno antes de ela sair do Brasil. Médica, professora e pessoa sensacional”, relata um de seus primeiros alunos na UFPR, o Dr. Guilherme Amando de Carvalho.

Apesar da intensa rotina profissional, Dra. Maria Fernanda conta que uma “sensação de inquietude” a impulsionou a buscar, novamente, novos desafios. “Nessa época, havia uma ‘estrela em ascensão’ na área da Patologia, o Dr. Ian Roberts, do John Radcliffe”, conta, confidenciando: “Comecei a abordá-lo insistentemente, na intenção de conseguir um estágio e depois um pós-doutorado em Oxford.”

A estratégia deu certo. Seu trabalho no estudo da Nefropatia por IgA, ou doença de Berger, sob a supervisão do professor Roberts, abriu-lhe um novo mundo de possibilidades dentro da área. “No último fim de semana do estágio de três meses, ele me convidou para um almoço na casa dele. A intenção era me indicar para a vaga de um colega que não estava conseguindo se aposentar por não ter um sucessor, mas a esposa acabou convencendo-o de que quem precisava preparar um sucessor era ele próprio”, lembra-se.

Dra. Maria Fernanda explica que, como a carreira médica é muito bem estruturada dentro do sistema de saúde britânico, os profissionais planejam, inclusive, como finalizá-la, treinando um novo profissional para assumir suas responsabilidades. Assim, ela já está assumindo algumas das funções de seu atual mentor.

Na terra da Rainha

Trocar a capital paranaense pela cidade de Oxford não foi uma decisão difícil para essa médica curitibana. “Tanto quando fui para São Paulo como quando decidi me mudar para Oxford, tentei imaginar como seria meu futuro em cinco anos, e o que vislumbrei foi um mundo totalmente novo, inexplorado; melhor ou pior não sabia, mas certamente diferente”, ela conta, com empolgação. Embora a oportunidade de trabalhar em apenas um lugar, em uma cidade um pouco menor e com mais segurança tenham sido fatores que influenciaram sua decisão, o que determinou sua escolha foi a possibilidade de atuar tendo acesso a todos os recursos disponíveis, exercendo sua atividade em alto nível.

Assim, há cerca de três anos, a Dra. Maria Fernanda vive na cidade inglesa, a aproximadamente cem quilômetros da capital Londres, que abriga diversas universidades, entre elas a famosa Universidade de Oxford, por onde passaram personalidades como o pensador do liberalismo econômico Adam Smith e os escritores Oscar Wilde e Aldoux Huxley. É também berço de diversos políticos, muitos dos quais se tornaram primeiros-ministros, como Tony Blair e Theresa May.

Embora seja uma cidade relativamente pequena, com população de aproximadamente 150 mil habitantes, Oxford possui uma grande comunidade internacional, devido principalmente às universidades. “A população é bastante esclarecida, a mentalidade é muito aberta aqui”, comenta. Outra característica é a segurança pública. “Não tenho carro; ando de ônibus ou de bicicleta e já trabalhei até altas horas da noite e voltei para casa de bicicleta sem nenhuma preocupação”, conta a médica. 

E a fama dos ingleses de ser um povo mais fechado não é algo que a incomode: “Me sinto muito bem aceita aqui; contanto que você respeite as regras, tenha seu visto de trabalho e fale o inglês direitinho, você será bem recebido.” Além disso, o estabelecimento de limites claros entre a vida pessoal e a profissional é uma característica da cultura local que ela destaca positivamente.

National Health System

“Atualmente, grande parte de minha rotina é diagnóstica, amparando pacientes. Para tanto, tenho à minha disposição todos os recursos necessários para fechar um diagnóstico, claro que os utilizando com racionalidade”, explica a médica paranaense. A possibilidade de fazer apenas Medicina, sem o que chama de “perfumaria”, é algo que a inspira. “Aqui, as pessoas são muito gratas ao sistema de saúde público, assim como às pessoas que trabalham nele. A gente costuma falar que é mais fácil cair a Monarquia que cair o NHS”, ela brinca.

Assim como no Brasil, a saúde inglesa está amparada em um sistema público, com algumas diferenças. “O modelo adotado pelo SUS é mais abrangente do que o do NHS; um cidadão sem seguro de saúde ou um não cidadão europeu que necessitar de um procedimento médico será certamente atendido, mas arcará com os custos desse atendimento. O valor cobrado não será exorbitante, mas será de 150% do preço de custo daquele procedimento”, comenta.

A médica explica que o objetivo é promover o bem comum para o maior número de indivíduos com base na racionalidade e protocolos muito bem estabelecidos. “Por trabalharmos em um sistema unificado de saúde com os melhores recursos disponíveis, temos a obrigação moral de não ficar em cima do muro: não temos a desculpa de que a falta de um reagente ou de um recurso diagnóstico nos impediu de fechar o caso.”

E a racionalidade do sistema está também na otimização dos recursos disponíveis, como exemplifica a médica: “Tínhamos uma unidade de microscopia eletrônica aqui em nosso departamento, mas há dois anos a extinguimos e hoje enviamos as amostras para processamento em outro centro, a cerca de 200 km; como as distâncias são pequenas e o sistema é único, também recebemos biópsias de outros centros, tanto na forma de lâminas de vidro quanto de lâminas digitais enviadas de forma online.”

Outro fator interessante é que, na Inglaterra, a maior parte dos médicos atua no sistema público de saúde, ao passo que apenas uma fração muito pequena vai para a prática particular (o NHS é o maior empregador da nação, com 1,5 milhão de funcionários). “Comparando com o Brasil, aqui os ganhos são bem menores para o médico, o que acredito ser uma realidade justa, do ponto de vista da sociedade”, pondera.

Para poder atuar em terras inglesas, Dra. Maria Fernanda explica que o equivalente ao Conselho de Medicina daquele país aceita várias formas de revalidação de diploma. No seu caso, a certificação foi chancelada pelo Royal College of Pathologists, que a qualificou para exercer a Patologia.

Formação médica

No decorrer de sua experiência profissional, Dra. Maria Fernanda consolidou a opinião de que a Patologia possui um papel fundamental na formação médica, sendo uma ponte entre as ciências básicas e a prática clínica. “Fui treinada e dei aulas, na época em que fui professora da UFPR, em um formato bastante tradicional, tendo a Patologia como um elemento-chave do ensino da Medicina. Acredito que essa ainda seja a melhor forma de se fornecer uma base sólida ao entendimento das doenças”, defende.

Para ela, a formação ideal deve aliar uma consistente base teórica a experiências práticas. “O que a gente sente é que, talvez, não importe tanto se a Patologia é dada logo no início ou de forma integrada ao longo do curso; o que torna o ensino eficaz é a possibilidade de o professor com formação em Histopatologia elaborar os conteúdos e conduzir a disciplina da forma que ele achar mais inteligente”, acredita.

A patologista conta que, na Universidade de Oxford, a que ela está ligada, o ensino médico é mais tradicional, assim como acredita ser na UFPR. “Aqui também trabalhamos com lâminas digitais, algumas peças escaneadas em três dimensões, mas a forma como entregamos nosso conteúdo é, na maior parte, através de aulas expositivas, discussões em pequenos grupos, e pot sessions, em que os alunos têm contato com peças anatômicas ao vivo, algumas até centenárias.”

Por ser membro do NHS, Dra. Maria Fernanda explica que também possui a responsabilidade de prestar assistência aos estudantes de Medicina das universidades ligadas ao hospital em que trabalha. “Entende-se que todos os envolvidos em um hospital-escola têm o dever de contribuir com o ensino médico; não se ganha nada diferente para fazer isso, algo bem particular daqui”, esclarece.

Denominador comum

Ao longo de seus vinte anos de carreira, a Dra. Maria Fernanda pôde confirmar, na prática, aquilo que seu pai lhe dissera quando ainda decidia qual profissão seguir: que a profissão médica pode ser exercida pelos mais diferentes perfis. Por ter uma personalidade reservada, ela afirma ter encontrado na Patologia a possibilidade de atuar nos “bastidores”. “As pessoas que convivem comigo dizem que sou uma pessoa fácil de lidar, mas a verdade é que sou bastante tímida, nunca quis ficar no centro das atenções”, confidencia.

E outros exemplos de diferentes personalidades em uma única profissão estão dentro de sua própria família: seu pai, o Dr. Hélcio Bertolozzi Soares, é ginecologista e obstetra e médico do trabalho. Formado há quase cinco décadas pela Universidade Católica do Paraná, ele divide seu tempo atendendo pacientes em sua clínica e atuando na defesa da categoria: foi presidente do Conselho Regional de Medicina do Paraná (CRM-PR) e atualmente é conselheiro integrante das Câmaras Técnicas de Bioética e de Reprodução Assistida da autarquia.

Seu tio, Dr. Hélvio Bertolozzi Soares, também atua na Ginecologia e Obstetrícia na capital paranaense, assim como seu irmão, o Dr. Luiz Guilherme Sanches Soares, quem possui, ainda, área de atuação em Endoscopia Ginecológica. “Sei que existem pessoas com extrema vocação à profissão, como meu irmão, que sempre quis ser médico”, afirma a Dra. Maria Fernanda. “Na casa dele, há sempre uma meia dúzia de cartões de pacientes com agradecimentos e isso é muito bacana; sinto-me muito orgulhosa dele.”

Ela lembra, ainda, o exemplo de sua irmã, Dra. Maria Angélica Soares Queiroz Telles, que é pediatra neonatologista. “É interessante notar que ela é uma pessoa perfeita para atuar na área intensivista, por ser uma profissional extremamente técnica e resiliente. Uma guerreira”, denota, lembrando que sua outra irmã, Maria Cecília, é advogada na cidade de Pato Branco.

“O denominador comum disso tudo é que, para ser médico, você precisa ter uma grande dose de compaixão pelas pessoas que atende; não se pode ser um médico que não vê o paciente que está por trás da doença ou do diagnóstico. Além disso, é necessária uma boa dose de paixão e dedicação, estudar um pouco todos os dias”, acredita.

Planos e futuro

Após conceder entrevista para este perfil, por telefone, Dra. Maria Fernanda esteve há duas semanas no Brasil para passar férias e visitar a família, aproveitando, também, para visitar o CRM-PR. Voltar ao país de origem em definitivo, no entanto, não faz parte dos planos dessa médica patologista, pelo menos no momento. “Chega um ponto em que ficamos mais preocupados em como fazer e não tanto com o que fazer apenas”, afirma, explicando: “Tornar-me uma profissional mais completa, mais confiável, que possa praticar a Medicina e a especialidade em alto nível, com grande qualidade nos diagnósticos, ajudando os colegas clínicos e pacientes de todos os estratos culturais e sociais, esse é meu objetivo.”

Médicos Paranaenses pelo Mundo

Para saber mais sobre o espaço criado e indicar novos personagens, acesse AQUI.