11/09/2014
Walcyr Carrasco
Faz pouco, tive de renovar meu passaporte. Fiquei encantado com a eficiência da Polícia Federal. Agendei minha ida pela internet, ao aeroporto de Viracopos. Fui atendido por moças simpáticas, 15 minutos antes do horário previsto. O prazo de entrega era de sete dias. No dia marcado, rapidamente recebi meu novo passaporte. Alguém pode imaginar que tudo caminhou tão bem porque sou um escritor conhecido. Coisa nenhuma. Todas as pessoas foram atendidas de forma igual. Lembrei com um arrepio na espinha quando tirei meu primeiro passaporte. Eu tinha 20 anos (faz tempo!). Tive de recorrer a um despachante, fiquei horas de pé numa fila. Atualmente, a eficiência da Polícia Federal eliminou até o despachante, um intermediário suspeito, para agilizar. Quando tirei nova carteira de identidade, o Poupatempo facilitou tudo. Sem filas imensas, fui atendido rapidamente, e o documento saiu no prazo. Ah, nem preciso comentar a eficiência do Imposto de Renda. Se meu dentista tentar ocultar o que lhe paguei, um sistema de cruzamentos eletrônicos descobrirá. Hoje há até nota fiscal eletrônica, que facilita tudo!
Se em tantos sistemas existe eficiência, por que não acontece o mesmo com a saúde? Suponha o caso de uma mulher, na periferia, que descobre um nódulo no peito. Em São Paulo, ela tem de ir até a AMA, espécie de posto de saúde, mais próxima. Marca consulta com um clínico geral, pessoalmente ou, com sorte, por telefone. Demora 20 dias, um mês. Mostra o nódulo e é encaminhada a um ginecologista. Mais um mês, por aí. O ginecologista pede exames, que demoram mais dois, três meses. Então ela marca nova consulta, com novo prazo. Se o ginecologista perceber uma alteração, a encaminhará a um oncologista, num hospital. Certas especialidades demoram mais, uns dois meses. O novo médico pede novos exames. Costumam ser realizados com maior rapidez, uns 15 dias. A paciente marca nova consulta. Ai, meu Deus, mais um mês... Só então ela descobre: é câncer.
Uma lei recente determina que, nesses casos, a operação não demore mais de 60 dias. Mas some todos os prazos. Dá cerca de um ano. Se for um câncer, não terá se espalhado pelo corpo? O câncer é uma doença que, em algumas pessoas, se desenvolve rapidamente, em outras não. Existem, não nego, oásis dentro do Sistema Único de Saúde (SUS). Os portadores de HIV são atendidos por uma rede paralela, recebem remédios. Iniciativa do ex-ministro da Saúde José Serra, no governo de Fernando Henrique Cardoso, que transformou o país em parâmetro mundial no tratamento da aids. Mas não é a regra.
Conheci uma jovem que sentiu dores na perna. Foi de médico em médico, até constatar um câncer. Mesmo sendo atendida num excelente hospital público, em São Paulo, ia com o marido, um sushiman de vida modesta, às 4 da manhã para a fila. Já havia uma multidão. Aí, recebiam uma pré-senha. Sim, uma senha para entrar na recepção do hospital, quando houvesse lugar! Lá, recebiam outra senha, de atendimento. Quando conseguiu o tratamento, teve de amputar a perna. Mas ela voltou a sentir dores. Teve de reviver tudo: marcar consultas, exames etc. Novamente, tarde demais. Morreu aos 28 anos, deixou filho e marido.
Muitas vezes, quando entro no Facebook, vejo a foto de uma linda moça, postada pelo viúvo em noites de saudade. Sempre diz que “há mais uma estrela no céu”. Ele cria, sozinho, o menino de 7 anos, com muito amor. Mas a mãe faz falta, como não faria?
Jamais saberemos, mas é justo suspeitar que o tempo que ela perdeu entre cada consulta, cada exame, pode ter sido um fator decisivo para disseminar o câncer, causar a metástase. Como ela, há inúmeros casos, em várias enfermidades. Reconheço que os grandes hospitais oferecem bons tratamentos. Mas, para chegar lá, é preciso atravessar uma estrutura cruel, chamada SUS. Suponho que, se alguém tiver doença grave, o mais fácil é se atirar em frente a um carro nas proximidades do Hospital das Clínicas, em São Paulo. Irá para o pronto-socorro e, já internado, conseguirá o tratamento muito mais rapidamente que por meio do sistema demorado do SUS.
Humor negro? Pode ser. Fica a pergunta: se criaram uma estrutura de funcionamento tão hábil para o Imposto de Renda, entre outras atividades, o que impede de fazer o mesmo com a saúde? É só grana ou questão de vontade?
Artigo publicado na coluna do autor na Revista Época.
*As opiniões emitidas nos artigos desta seção são de inteira responsabilidade de seus autores e não expressam, necessariamente, o entendimento do CRM-PR.