11/07/2008

Liminares da Justiça ameaçam a lei seca

Empresário obteve o direito de não fazer teste do bafômetro; em Brasília, juíza desconsiderou o exame clínico para atestar embriaguez.


Advogados afirmam que a lei precisa ser alterada, já que permite várias interpretações; governo diz estar convicto da constitucionalidade da lei.


Menos de um mês após o início da vigência da lei seca, duas liminares concedidas nesta semana colocam em xeque a legislação que aumentou o rigor contra quem dirige após beber. Uma, de um desembargador de São Paulo, garante a um empresário o direito de não fazer o teste do bafômetro. Outra, de uma juíza de Brasília, usa a nova lei para desconsiderar o exame clínico (sem teste de sangue ou de bafômetro) que baseou um processo.

Advogados consultados pela Folha dizem que a lei precisa ser alterada. Todos afirmam que a liminar de São Paulo é correta, pois a Constituição brasileira garante ao indivíduo o direito de não produzir provas contra si.

A maioria também concorda com a de Brasília, já que o teste clínico (exame visual feito pelo médico) não estabelece a dosagem de álcool no sangue ou no ar expelido dos pulmões -critérios usados pela nova lei para determinar quem será punido só com multa -e perda por um ano do direito de dirigir- e quem está sujeito a ser preso.

Em Brasília, um jornalista se envolveu em um acidente e a sua suposta embriaguez foi constatada por exame clínico. A desembargadora Sandra de Santis, da 1ª Turma Criminal do Tribunal de Justiça, entendeu que o exame visual não poderia ser usado como prova.

Já o habeas corpus concedido pelo desembargador Márcio Franklin Nogueira, de São Paulo, foi pedido pelo empresário e diretor jurídico da Abrasel (Associação Brasileira de Bares e Restaurantes), Percival Maricato, que aos 64 anos diz beber "dois chopinhos" todo dia. "Isso não quer dizer que eu fique embriagado", diz (entrevista abaixo).

A lei seca prevê multa de R$ 955, sete pontos na carteira e suspensão do direito de dirigir por um ano para quem se negar a fazer testes. O desembargador argumentou que não cabem punições por um direito previsto na Constituição e disse que a lei é severa demais.

O secretário de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça, Pedro Abramovay, diz que está convicto da constitucionalidade da lei e feliz com os resultados atingidos. "O direito à vida é um direito muito mais importante do que o de vender bebida para quem vai dirigir."


"Lei antiga era melhor"

Membro da Comissão de Direito Penal da OAB de São Paulo, Filipe Fialdini considerou corretas as duas liminares. "Isso mostra que a lei foi malfeita", afirmou. "A [lei] anterior era melhor; essa nova estabelece uma dosagem que não pode ser auferida porque ninguém é obrigado a fazer o teste."

O diretor da faculdade de Direito da PUC-SP, Marcelo Figueiredo, também acha que a nova lei deixa lacunas e que seria melhor ter fiscalizado a anterior. "Antes era possível verificar se havia sinais de embriaguez ou não, agora querem impor dosagens e esse limite é exagerado", afirma.

Para o criminalista David Rechulski, as lacunas deveriam ter sido verificadas. "Para se propor uma lei, é preciso analisar muito antes. Não pode deixar margem para interpretações assim", diz. "Agora temos algo que é inconstitucional, e a lei vai acabar caindo. Isso só vai sobrecarregar tribunais, gerar morosidade e impunidade."


Entrevista

Não sou delinqüente, diz empresário

Autor da ação que resultou na primeira liminar que garante o direito de não sofrer punições caso não faça o teste de bafômetro, o empresário e diretor jurídico da Abrasel (associação de restaurantes e bares), Percival Maricato, 64, diz que pediu o habeas corpus porque não aceita ser tratado como "delinqüente".


FOLHA - O sr. bebe?

PERCIVAL MARICATO - Uma média de dois chopinhos por noite há 46 anos. Uma vez ou outra não bebo, mas geralmente bebo vinho ou chope.

FOLHA - Quanto o senhor acha que alguém pode beber antes de dirigir?

MARICATO - Acho que devia valer o mesmo limite dos Estados Unidos, Inglaterra e Canadá, 0,8 decigramas. Daria para dois copinhos, três dependendo da estatura.

FOLHA - Como seria feita a fiscalização sem bafômetro?

MARICATO - Como deveria ter sido feito desde que foi aprovado o Código Brasileiro de Trânsito. A polícia, suspeitando que alguém está dirigindo alcoolizado, leva para a delegacia.

FOLHA - E as pessoas que não aparentam estar alcoolizadas?

MARICATO - Se ela [a polícia] não suspeitar, não pode prender. Você é um cidadão, andando na rua, o que você acha de um policial olhar para a sua cara e te levar para a delegacia? Isso num Estado Democrático de Direito não existe. É que nós vivemos tanto tempo no autoritarismo que as pessoas acham normal a polícia prender centenas de pessoas, pedir documento, fazer o cara enfiar a boca no bafômetro.

FOLHA - O sr. já foi procurado por outras pessoas que também querem um habeas corpus?

MARICATO - Primeiro, quero que se informe que não quero o habeas corpus para sair por aí fazendo o que quiser. Quero para obrigar a sociedade a aprofundar essa discussão. Não aceito ser chamado de delinqüente. Tenho 64 anos, nunca cometi nenhum delito. Sou advogado, sou dirigente de uma dúzia de entidades empresariais, três entidades filantrópicas, fui preso na época da ditadura justamente por lutar por um Estado Democrático de Direito e agora alguém diz que sou delinqüente?

FOLHA - Ninguém mais o procurou pedindo o habeas corpus?

MARICATO - Já procuraram. A essa altura tem pelo menos uma dezena de milhões de brasileiros que estão pensando em fazer o mesmo.


DISPUTA JURÍDICA

RELATOR DA LEI CRITICA LIMINAR CONTRA BAFÔMETRO

O deputado federal Hugo Leal (PSC-RJ), relator da lei seca, disse estar muito preocupado com a liminar concedida a um empresário de São Paulo. "O juiz concede um habeas corpus para a pessoa poder beber e dirigir? E se ele se envolver em um acidente? O juiz vai liberar?" Ele criticou a tese de que os motoristas não precisam se submeter ao teste do bafômetro. "Estão fazendo um drama com relação a que a pessoa não precisaria fazer prova contra si mesma. Isso vem de um tratado internacional sobre direitos humanos. Era para que, quando a pessoa sofresse algum tipo de perseguição ideológica ou tivesse os direitos humanos feridos, não precisasse depor contra si mesma. Isso [aplicar esse tratado na questão da lei seca] é completamente equivocado."


Fonte: Folha de São Paulo

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