17/07/2008
Marco Antonio Bessa
A recente lei que institui a alcoolemia zero para quem dirige tem um mérito essencial. Trouxe à luz o debate sobre a relação ambígua e confusa que a sociedade brasileira mantém com o álcool e com as outras drogas. Pretendo evitar aqui as estatísticas e os números já conhecidos.
Acreditamos que é elegante e sofisticado entender de vinhos e suas misteriosas combinações com os diversos alimentos e sabores. É prova de fina educação saber degustar um ótimo charuto (mesmo que o melhor deles seja proveniente daquela ilha ao sul dos EUA, governada de modo exótico) e conciliar um bom licor ou conhaque ao final da refeição.
Por outro lado, não suportamos o convívio com pessoas embriagadas. Quando muito, rimos de suas caricaturas em comédias e personagens de estética duvidosa. Mesmo entre médicos, muitos não gostam de atender alcoolistas.
A mídia publicitária apresenta, 24h por dia, jovens saudáveis e bonitos divertindo-se em festas, atividades esportivas ou na praia. Utiliza figuras conhecidas e admiradas para associar a imagem de sucesso, prazer e alegria às bebidas, em especial à cerveja. E orgulha-se de apresentar as mulheres de modo desfrutável e cínico, reduzindo as mulheres às supostas qualidades da mesma cerveja.
Mas a propaganda não mostra os corpos destruídos ou mortos dos jovens vítimas ou causadores de acidentes automobilísticos ou de brigas violentas. Também não mostra as mulheres agredidas em casa por seus maridos embriagados, ou os inutilizados em acidentes de trabalho. Só quem tem em sua família alguém dependente de álcool - e são milhões no Brasil - conhece a outra face das "inocentes" cervejas.
A decisão do governo de instituir o nível zero de álcool no sangue para quem dirige só pode ser entendida em um contexto mais amplo.
Em primeiro lugar não é uma lei seca - tentativa de marcar de modo negativo a lei. A lei não proíbe ninguém de beber. Apenas afirma: quem bebe não pode dirigir. Não há nenhum exagero ou arbítrio nisso, como demonstram inúmeros exemplos internacionais.
Aqueles que combatem a lei com argumentos que invocam o direito individual ou o excesso de ingerência do Estado na vida do cidadão, mesmo que possam estar com boas intenções, estão equivocados. Pensam que beber em pequena quantidade é inofensivo e que não induz a nenhum risco.
Mas isso não é verdade, ingerir álcool em qualquer quantidade altera a capacidade cognitiva e motora de qualquer pessoa, em níveis que dependem do tipo de bebida consumida, peso, sexo, idade e tempo.
Pessoas inteligentes, educadas e bem informadas que pensam que pequenas doses de álcool são inócuas e compatíveis com uma atividade de alto risco como dirigir um automóvel, estão iludidas, ao esquecer que o álcool, embora lícito, é um droga pesada. Talvez inebriadas por excesso de publicidade ou carentes de informação científica.
Entretanto, mesmo essas pessoas dificilmente aceitariam como natural que um cirurgião operasse depois de beber "apenas" umas duas inofensivas cervejinhas, ou dois "saudáveis" cálices de vinho ou uma "relaxante" dose de uísque. Ou que um piloto de avião, ou um juiz, ou um jogador de futebol, ou uma empregada doméstica ingerisse tais "mínimas" quantidades de bebida no exercício de suas funções.
Todo cidadão tem o direito de ser protegido em sua integridade física e emocional. Ou seja, andar nas ruas e dirigir seu automóvel sem correr o risco de ser atingido por um motorista alcoolizado.
Todo cidadão tem o direito de beber o que quiser e quanto quiser. Só não pode obrigar a sociedade a pagar, em todos os níveis, por seus atos inconseqüentes e irresponsáveis.
Por Marco Antonio Bessa, presidente da Sociedade Paranaense de Psiquiatria, conselheiro e coordenador da Comissão de Saúde do Médico do Conselho Regional de Medicina do Paraná (CRM-PR), publicado no Caderno Mais Saúde, do jornal O Estado do Paraná.