09/02/2015
Sérgio Martins-Costa
O movimento intitulado Humanização do Parto teve início na segunda metade do século XX como reação ao excesso de intervenção médica no processo do nascimento. As metas do movimento visam devolver à mulher o protagonismo do processo do nascimento, o qual foi substituído pela figura do médico obstetra, garantir à mulher o direito de escolha quanto ao modo e ao local de parto e frear as crescentes taxas de intervenções médicas, em especial a taxa de cesariana.
Até metade do século passado os partos eram quase sempre acompanhados por parteiras, que chamavam os médicos quando achassem necessário e o número de cesarianas situava-se abaixo de 5%. No final do século passado, na maioria dos países, as taxas de cesariana beiravam os 30% e a quase totalidade dos partos passou a ser atendida dentro de hospitais por médicos especialistas. Concomitantemente a este movimento “médico-intervencionista”, foi observada uma inquestionável redução nas taxas de mortalidade materna e perinatal. Contribuíram enormemente para esta redução, o avanço e a segurança da cesariana em substituição ao parto distócico, o uso da ocitocina para correção do parto disfuncional e da hemorragia puerperal e o uso racional da antissepsia e da antibioticoterapia no controle da infecção obstétrica. Embora não haja como negar a relação causal entre a assistência médica especializada e a redução na morbi-letalidade das mulheres e das crianças, é evidente também que outros fatores, além dos cuidados assistenciais, contribuíram por manter crescente e excessiva a taxa de intervenção médica no processo do nascimento, com a cesariana chegando ao absurdo de ultrapassar o parto vaginal como modo de nascimento no Brasil.
Entretanto, nos últimos anos temos visto que os protagonistas do movimento a favor da Humanização do Parto foram substituídos pelos protagonistas da luta contra a chamada “Violência Obstétrica”, trocando a educação de obstetras pela desconstrução ideológica da obstetrícia. Basta dar uma olhada nas metas preconizadas pelos que se intitulam lutadores contra a “violência obstétrica”, para nos darmos conta do risco a que estarão submetidas muitas mães e recém-nascidos caso sejam adotadas na íntegra: taxas de cesariana abaixo de 15%, abolição do uso da ocitocina e da episiotomia e os partos “normais” atendidos em Centro de Parto Normais (CPN) ou em casa. A afirmação da OMS feita no século passado, de que as taxas de cesariana deveriam estar abaixo de 15%, não tem nenhum embasamento consistente. Pelo contrário, estudos realizados em vários países, inclusive no Brasil, mostram que a mortalidade materna diminui à medida que aumentam as taxas de cesariana até um nível de 15%, a partir do qual o aumento não mais protege as mães da mortalidade. Portanto, 15% deve ser o limite inferior e não superior . No Brasil, as maiores taxas de mortalidade materna estão nas regiões com menor incidência de cesárea e vice-versa. As cesáreas desnecessárias, são as feitas fora do trabalho de parto em mulheres saudáveis e estas não aumentam o obituário materno.
Em relação à episiotomia, vários estudos apontam que quando feita em menos do que 30% das mulheres com parto vaginal, aumentam os casos de lesões do esfíncter anal com consequente incontinência fecal. Portanto sua eliminação pura e simples traria mais dano do que benefício. No que se refere à ocitocina exógena administrada no trabalho de parto e pós-parto, hoje acusada de poder abolir o afeto da mãe pelo seu filho, conquanto inibiria a produção da ocitocina endógena, esta sendo “hormônio do amor”, a injustiça é ainda maior. Talvez nenhuma outra droga tenha salvo mais vidas do que ela, basta acompanharmos a redução da mortalidade materna por hemorragia após seu advento, sem falarmos nas inúmeras cesáreas que são evitadas quando se corrige um parto disfuncional ou se induz um parto quando o nascimento se faz necessário e o trabalho de parto não desencadeou espontaneamente.
Mas o que mais assusta é na realidade a promulgação da portaria no 985/GM, de 5 de agosto de 1999 pelo Ministério da Saúde, criando e regulando o funcionamento dos CPN, com os mesmos podendo funcionar fora dos hospitais e sem atendimento médico .
Os defensores da criação dos CPN sustentam a segurança destes programas com dois argumentos: 1º É prática tradicional na Holanda; 2° O estudo Birthplace in England, publicado no BMJ em 2011, atestaria a segurança desta prática. Nada mais enganoso do que estes embasamentos.
Annemieke Evers e colaboradores (BMJ. 2010), pretendendo atestar a segurança do sistema de saúde holandês, avaliaram prospectivamente uma coorte de 37.735 nascimentos, comparando partos de gestantes de baixo risco, atendidas em CPN por parteiras, com gestantes de alto risco atendidas em hospitais por obstetras. Os RNs das gestantes de baixo risco atendidos pelas parteiras em CPN tiveram mais do que o dobro de mortalidade perinatal relacionada ao nascimento. As parturientes que foram referidas pelas parteiras aos obstetras tiveram 3,6 vezes mais risco de uma mortalidade perinatal relacionada ao nascimento e 2,5 vezes mais chance de terem seus filhos internados numa UTI neonatal. Já o estudo inglês, uma coorte prospectiva com amostra por conveniência que “randomizou” gestantes de baixíssimo risco para partos domiciliares, em CPNs e em hospitais, mostrou uma mortalidade perinatal em nulíparas com partos domiciliares de 1,75 vezes maior, sem diferença na mortalidade perinatal entre multíparas. Os grupos estudados não foram homogêneos com 20% das parturientes “randomizadas” para parto hospitalar com pelo menos 1 fator de risco, a taxa de transferência chegou a 45% nas nulíparas e o tempo médio de transferência intra-parto para o hospital variou de 97 a 157 minutos!
Como esta prática tem se tornado frequente nos EUA, inclusive com os partos da famosíssima Gisele Bündchen em casa, vários estudos têm sido publicados mostrando resultados aterradores. Destaco um pela densidade dos seus números e a gravidade dos eventos avaliados. Amos Grünebaun e cols. (www.ajog.org, 2013), estudando 13.891.274 nascimentos nos EUA entre 2007 e 2010 (dados do CDC), avaliaram dois desfechos compostos, dano neurológico e APGAR igual a zero no 5º minuto de vida, comparando partos atendidos por parteiras em domicílio em CPN e em hospitais com partos atendidos por médicos em hospitais. A chance de um RN a termo ter dano neurológico foi 2 vezes maior nos nascidos em CPN e 4 vezes maior nos nascidos em casa, enquanto a chance do bebê ter APGAR de zero no 5º minuto foi 3,5 vezes maior nos nascidos em CPN e 10,5 vezes maior nos nascidos em casa. Os RNs atendidos por parteiras em hospitais tiveram significativamente menos chance de terem APGAR de zero no 5º minuto e significativamente menos chance de terem dano neurológico quando comparados com os partos atendidos por médicos, o que pode ser explicado pelo menor risco apresentado pelas pacientes atendidas pelas midwives. Este estudo mostra também que o fator determinante do dano é o local de atendimento e não o profissional selecionado para fazê-lo.
Devemos sim repensar o modo como atendemos nascimentos no nosso meio, principalmente no sistema de saúde suplementar que leva a cifras de cesarianas e intervenções por conveniência que chegam perto dos 100%. Temos bons exemplos em hospitais universitários que atendem gestantes de alto-risco, o fazem em regime de plantão, têm protocolos e auditorias clínicas e exibem taxas inferiores a 35% de cesariana.
O que não podemos é tratar da segurança e da vida de nossas pacientes como se o parto fosse tão somente um “rito de passagem” de gerações, isento de riscos e fadado a sempre ter um final feliz. A natureza não é sempre perfeita, amorosa e dadivosa, e a dor maior é a dor de ver perdida a vida de um filho, que recém tentava começar sua própria vida.
Artigo escrito pelo Dr. Sérgio Martins-Costa MD PhD, Gestor do Instituto da Mulher do Hospital Mãe de Deus, em Porto Alegre.
*As opiniões emitidas nos artigos desta seção são de inteira responsabilidade de seus autores e não expressam, necessariamente, o entendimento do CRM-PR.