04/02/2019

Homenagem aos Pioneiros: Dr. Amílcar Gigante (CRM-PR 52)

Compôs primeiro corpo de conselheiros eleitos para o CRM-PR. Vítima do AI-5, que o afastou na docência na UFPR, foi anistiado em 1979 e chegou a ser reitor da Universidade Federal de Pelotas, sua cidade natal. Foi um lutador em prol da democracia

Nascido em 3 junho de 1929, na cidade gaúcha de Pelotas, Dr. Amílcar Gorheneix Gigante (CRM-PR 52) construiu ao longo de quase sete décadas de vida um legado científico, político e ideológico que inspira ainda hoje muitos profissionais das mais diversas áreas nas quais atuou. Formado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) em 1952, custeou os próprios estudos em Medicina com outra profissão: a de taquígrafo da Assembleia Legislativa do Paraná.

clique para ampliarclique para ampliarDr. Amíícar Gigante. (Foto: Arquivo.)

Após laurear-se, construiu uma frutífera carreira nos diferentes ramos que a profissão lhe permitiu. Foi professor adjunto de clínica médica e diretor do Hospital de Clínicas da UFPR, chefe do gabinete de Secretaria de Estado da Saúde do Paraná no período de novembro de 1954 a maio de 1955, e fez parte da segunda gestão do Conselho Regional de Medicina do Paraná (CRM-PR), a primeira eleita pelo voto direto, entre os anos de 1959 e 1963. Eleito suplente, ele foi convocado já na segunda reunião plenária do Conselho, em 19 de julho de 1959, para assumir função de conselheiro titular pela ausência por um período do então presidente da autarquia, Prof. João Vieira de Alencar.

Tendo como uma de suas marcas o envolvimento em atividades políticas, foi proibido de lecionar aos 40 anos de idade. Era 1969, e a Ditadura Militar endurecia ainda mais com o Ato Institucional nº 5. Desempregado, retornou à cidade natal, Pelotas.

Retorno à cidade natal

Após a Lei da Anistia, em 1979, que restabeleceu direitos políticos e a volta ao serviço de servidores excluídos durante o período militar, Dr. Amílcar voltou ao trabalho como docente, dessa vez na Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Ali, se tornaria o primeiro reitor a ser eleito e nomeado na instituição, dentro de um contexto de redemocratização e realização de nova Assembleia Constituinte. Tomou posse em 11 de janeiro de 1989 e liderou, a partir de então, a gestão “Construção”, entre os anos de 1989 e 1992.

clique para ampliarclique para ampliarFicha de inscrição do médico no CRM. (Foto: Reprodução.)

Segundo lembrou o Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação da época, Sérgio Roberto Martins, em evento comemorativo aos 45 anos da universidade, realizado em 2013, as grandes questões que marcaram a gestão de Gigante formavam um ideário de temas como democracia, ciência, utopia, ética, política e relação ensino versus aprendizagem.

Falecimento

Em notável coincidência, Dr. Amílcar Gigante faleceu, aos 69 anos, no Dia do Médico, em 18 de outubro de 1998, deixando sua esposa e cinco filhos. Uma delas, Denise Petruci Gigante, é nutricionista e atualmente leciona na mesma Universidade Federal de Pelotas, da qual seu pai foi reitor.

Em 2013, o Dr. Amílcar Gigante recebeu homenagem póstuma na 72ª Caravana da Anistia do Ministério da Justiça, realizada na sede da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) no Paraná, em Curitiba, pelo seu histórico de luta em prol da redemocratização do País.

Sua memória permanece presente em diversas construções que celebram seu legado, como o Centro de Pesquisas em Saúde Dr. Amilcar Gigante, na UFPel; a Biblioteca Amílcar Gigante, no bairro Alto da XV, em Curitiba; a Escola Estadual Dr. Amílcar Gigante, em Pelotas; e livros que publicou ao longo de sua vida.

Mensagem

Em 23 de novembro de 1990, escreveu a interessante crônica sobre o viver e a profissão médica, abaixo reproduzida:

clique para ampliarclique para ampliarA mensagem, que virou painel no CRM-PR. (Foto: Reprodução)

“Prezado Doutor:

Hoje eu saí a caminhar, de acordo com a sua determinação. Claro que, antes de sair, tomei todos os medicamentos que me foram receitados. Inclusive o diurético. Usei roupa leve, sapatos cômodos (não me animei de usar tênis, achei um pouco destoante da minha idade, ou, quem sabe, eu me lembrei de quando era menino e usava tênis frequentemente, porque eram mais baratos...)

Enquanto caminhava fui fazendo várias descobertas. Vendo coisas e pessoas que há muito tempo não via. Ao cruzar por aquela moça bonita do meu tempo (como está envelhecida, coitada...) Apenas nos cumprimentamos com um aceno de cabeça e dissemos, ao mesmo tempo, “Não se pode parar”. (E nem ao menos foi possível dizer, como dizíamos há muitos anos, em tais coincidências, “que venha daí...”)

Eu ia pensando, pensando é também uma coisa que se faz ao caminhar, pensando só em coisas agradáveis, quando saltei para trás, assustado pelo latido de um enorme cão, aparente dos mais ferozes, e separado da rua por uma grade das mais baixas. Recordei a teoria do “stress” (acho que foi esquecida cedo demais, ao mesmo tempo que se popularizou com um sentido que eu penso ser, muitas vezes, distorcido, anti-social para falar a verdade) e imaginei todas as respostas que o latido deve ter desencadeado... nenhuma delas favorável a um hipertenso.

Segui, pensando coisas sobre a genitora do cão. Rapidamente passando a pensar no dono e em seus antepassados, e no mundo cão que construímos onde as grades e os cães são cada vez mais a paisagem, paisagem da insegurança. De qualquer forma segui caminhando, e olhando, e pensando. Encontrei outra moça do meu tempo, esta, coitadinha, tão envelhecida que nem sequer me reconheceu...

Agora, mais perto do centro, já havia vitrines, (ou vitrinas, ou monstras, ah! A época dos puristas da língua, dos cruzados contra o galicismo. Não confundir com os cruzados moeda, com os cruzados do boxe. Tanto ou mais demolidores da resistência das pessoas quanto os filhos-pais do cruzeiro. Vitrines ou vitrinas, tem vantagens. Servem como entretenimento, servem para que se descanse fazendo cessar aquele desconforto atrás do osso do peito, até parece que nos velhos livros de medicina era descrito o olhador de vitrines (e como os livros eram mesmo franceses não há porque preocupar-se, agora, com o galicismo).

Atravessar a rua... esperar que a sinaleira autorize (até minha neta, na escolinha, já aprendeu isto, ainda bem que ensinam coisas úteis, pena que não ensinem apenas coisas úteis); agora sim, posso atravessar com segurança. É, realmente poderia, se o motorista apressado não ignorasse a sinaleira, usando a buzina como única expressão de sua inteligência, engraçado, o susto foi menor agora do que com o cachorro (será o resultado do condicionamento?), além do mais fez-me recordar que os livros de leitura Petrópolis ensinavam que o homem é o único animal que ri, então eu ri, pensando que o homem é o único animal (e põe animal nisto!) que buzina.

Bem, o mais importante é seguir em frente... É preciso caminhar, caminhar muito, a cada dia mais, mais um pouco. Eu entendi, doutor, que isto servirá para formar circulação colateral. O que não entendo é por que durante mais de três décadas sendo pedestre ou, nos momentos mais confortáveis, ciclista, já não se formou essa tal circulação.

Claro, entendo bem, naquele tempo os vasos principais – os que vêm desde o nascimento – eram todos permeáveis. Aí eu fumei, fui obeso, sedentário, hipertenso, apreciador de carne gorda, manteiga, banha de porco (está bem, pode ter piorado minhas artérias, em compensação para a economia local e regional era bem mais úteis do que os atuais – e menos saborosos – óleos vegetais.)

O fato é que arranjei uma porção de ateromas (aliás a visão radiográfica de um deles, na aorta abdominal, próprio da faixa etária – maldita faixa! – foi que me fez cair na realidade. Obvia: que eu negava.). E agora, doutor, começo a sentir que o diurético funcionou bem, há um desconforto no que chamarei de baixo ventre, e onde irei? Não há mictório público, são cada vez mais escassos os locais onde uma instalação dessas está disponível. E agora, doutor, o que fazer?

Será que esse novo “stress” não será importante, tanto quanto o latido do cachorro, o carro buzinando, a moça envelhecida, a radiografia que mostrou o ateroma, e tantas outras coisas do dia-a-dia ou as de alguns dias, ou pior que tudo, a certeza de que já faltam menos dias, quem sabe poucos dias, poucos para o tanto que eu gostaria de ainda fazer. Ah, doutor, como essa caminhada faz bem para a minha saúde!”

Pelotas, 23 de novembro de 1990

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