29/02/2016
Levantamento do CFM avalia gasto per capita em saúde pública; indicadores mostram que valores aplicados pelos municípios sofreram queda de mais de R$ 10 bilhões
Os governos federal, estaduais e municipais aplicaram, em 2014, por dia R$ 3,89 per capita para cobrir as despesas públicas com saúde dos mais de 204 milhões de brasileiros. Ao todo, o gasto por pessoa em saúde naquele ano foi de R$ 1.419,84. É o que aponta o mais recente estudo do Conselho Federal de Medicina (CFM), feito em parceria com a ONG Contas Abertas, a partir de informações sobre as despesas apresentadas pelos gestores à Secretaria do Tesouro Nacional, do Ministério da Fazenda, por meio de relatórios resumidos de execução orçamentária.
A atuação do Brasil, segundo os dados mais recentes da Organização Mundial da Saúde (OMS), está abaixo da média das Américas, cujo investimento per capita do setor público em saúde, em 2013, foi de US$ 1.816. – enquanto no Brasil, naquele ano, foi de US$ 523 (cerca de 70% menor).
Em ritmo regressivo, as aplicações em saúde por parte da esfera pública, já corrigidas pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), caíram 0,93% entre 2013 e 2014, atingindo a cifra de R$ 290,3 bilhões – cerca de 3 bilhões a menos que no ano anterior. Esse montante agrega todas as despesas na chamada “função saúde”, destinada à cobertura das ações de aperfeiçoamento do Sistema Único de Saúde (SUS) e outras com impacto direto na área. Boa parte desse dinheiro é usada também para o pagamento de funcionários, dentre outras despesas de custeio da máquina pública.
O decréscimo de R$ 10,3 bilhões nas despesas municipais (déficit de 8,83% em relação ao ano anterior) impulsionou negativamente o desempenho nacional, comprometendo o tímido aumento de dispêndios por parte dos Estados e da União – da ordem de 3,82% e de 4,84%, respectivamente. Para o economista e secretário-geral da ONG Contas Abertas, Gil Castello Branco, há nexo claro entre algumas decisões do governo federal e inúmeras implicações nos Estados e municípios.
“Em 2013 e 2014, com a preocupação predominante da reeleição, o governo aprofundou o uso da política fiscal para tentar reativar a economia a qualquer custo. Isenções e benefícios fiscais foram concedidos sem os resultados esperados. Assim, as receitas que já vinham diminuindo em decorrência da retração econômica, foram também afetadas pelos benefícios fiscais e isenções, o que fez murchar também as arrecadações dos estados e dos municípios”, explicou.
Ele acredita que os estados e os municípios têm parcelas de culpa na retração de seus investimentos em decorrência, sobretudo, da falta de planejamento. “Diversos deles, nas épocas de ‘vacas gordas’, concederam reajustes generosos de salários e aumentaram o número de servidores, despesas que não podem ser reduzidas com facilidade. Quando as dificuldades surgiram, os cortes em investimentos foram utilizados para minimizar o déficit”, afirmou.
O presidente do CFM, Carlos Vital, avalia que a carência financeira pode ainda ampliar os problemas enfrentados pela rede de hospitais federais, conveniados, filantrópicos e santas casas, que no ano passado sofreram com sucessivos atrasos e falta de pagamentos. “Por conta do subfinanciamento histórico e da má gestão, todo o sistema está comprometido. As autoridades precisam reconhecer a saúde pública como prioridade. Os problemas do setor começam com a definição destas prioridades e se estendem para a transposição de metas e para o orçamento e sua execução. Trata-se de um perverso ciclo, reforçado pela carência de recursos e pela descontinuidade das ações administrativas nos estados e municípios, além da leniência e da corrupção”.
No cenário mundial, desempenho do Brasil é baixo
Dados do Global Health Observatory Data Repository, mantido pela Organização Mundial da Saúde (OMS), revelam que do grupo de países com modelos públicos de atendimento de acesso universal o Brasil era, em 2013, o que tinha a menor participação do Estado (União, Estados e Municípios) no financiamento da saúde. Esta é analise mais recente com relação ao tema.
Considerando a fatia pública do total das despesas em saúde, no Brasil, esse percentual é de 48,2%. A proporção é baixa se comparada ao verificado em países como o Reino Unido (83,5%), França (77,5%), Alemanha (76,8%), Espanha (70,4%), Canadá (69,8%), Argentina (67,7%) e Austrália (66,6%).
Em se tratando de despesas em saúde per capita, em dólares, o Brasil, que gasta US$ 1.085, incluindo os gastos feitos pelos setores público e privado. Seu desempenho só não está pior do que a Argentina (US$ 1.074). Estamos deficitários em relação a todos os demais países mencionados: Canadá (US$ 5.718), Alemanha (US$ 5.006), França (US$ 4.864), Reino Unido (US$ 3.598), Espanha (US$ 2.581).
Contrastes marcam quadro nacional de gastos em saúde
Além do gasto global com saúde das três esferas de gestão, o CFM e o Contas Abertas também apuraram o valor aplicado individualmente pelos Estados e capitais com recursos derivados de impostos estaduais ou municipais, transferências fundo a fundo –excluídas apenas as aplicações diretas, ou seja, despesas da União ou do Estado em municípios, sem intermediação. Sob esse viés, a média de gasto per capita ao dia com saúde ficou em R$ 1,38 entre as 27 unidades da federação. Já nas capitais, essa média foi de R$ 1,87 ao dia.
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Os dados permitem comparar o desempenho entre vários Estados e cidades e verificar situações de extrema diferença de gasto per capita entre eles. Os piores colocados aplicam menos de um quarto ou um quinto do que daqueles que estão no topo do ranking. Por exemplo, entre as capitais, a pior colocada – Salvador (BA), com R$ 0,59 – aplica menos de 20% per capita do que a melhor colocada, Campo Grande (MS), com R$ 3,15.
Entre os Estados, 18 ficaram abaixo da média de gasto per capita ao dia (menos de R$ 1,38). Nas piores posições, aparecem Pará (R$ 0,74 por habitante ao dia), Maranhão (R$ 0,77) e Mato Grosso do Sul (R$ 0,80). No extremo oposto, com os melhores desempenhos, estão Distrito Federal, o primeiro colocado (R$ 3,27), Acre (R$ 2,92) e Tocantins (R$ 2,50).
Grandes e pequenos
O estudo também comparou os municípios de maior e de menor porte do Brasil – em termos populacionais. Foram avaliados os 10 municípios mais populosos, excetuando-se as capitais. Aparecem entre os destaques cidades paulistas, como Campinas, Guarulhos, Osasco, São Bernardo do Campo, e fluminenses, como Duque de Caxias e São Gonçalo. No grupo estão municípios que tem entre 686.122 e 1.324.781 habitantes.
São Bernardo do Campo e Campinas são as que mais gastam com saúde – R$ 3,36 e R$ 2,51 ao dia por habitante -, respectivamente. Enquanto a média entre os 10 municípios analisados é R$ 1,79, alguns municípios investem bem menos que isso. A pior colocada é São Gonçalo, com R$ 0,98.
O CFM também avaliou os 10 municípios brasileiros com menor população. São cidades que variam de 818 a 1.293 habitantes. O valor médio gasto em saúde, entre eles, é de R$ 6,03 ao dia por habitante. Borá (SP) e Serra de Saudade (MG) são os que mais aplicam – R$ 9,21 e R$ 7,52, respectivamente.
Miguel Leão (PI) e Oliveira de Fátima (TO) estão no final desta lista, com gastos de R$ 4,42 e R$ 4,29. Anhanguera, antigo município goiano fundado em 1953 e com população estimada em 1.104 habitantes, não havia fornecido dados ao Tesouro Nacional até o fechamento desta matéria.
Modelo assistencial
A análise dos dados deve ponderar não só quanto se gasta, mas também como se gasta, o chamado gasto em saúde associado ao modelo assistencial. A opinião é de Eli Iola Gurgel Andrade, vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e professora do Departamento de Medicina Preventiva da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Eli explica que o modelo assistencial que o Brasil luta para estruturar é aquele com a atenção básica organizada com base na ESF, tendo em vista a experiência de outros sistemas no mundo, sobretudo o sistema inglês, que é o mais antigo e que serviu de matriz para a organização dos sistemas na Europa. “Esta base é inclusive uma forma de se racionalizar gastos, pois assim que se entra pela porta de um hospital, já se entra em uma unidade de alta complexidade e, portanto, de alto custo”, diz.
A especialista explica ainda que, segundo a literatura, 85% das condições de saúde são passíveis de resolução na atenção básica. Para isso, no entanto, ela precisa ser de qualidade. “A saúde no Distrito Federal, por exemplo, é nacionalmente reconhecida como uma das mais precárias. O que acontece é que se tem um rede pública precária e se compra serviços do setor privado. Esses menos de 30% de cobertura de ACS e ESF significa que a população tem que procurar outros recursos, provavelmente a porta de entrada de um hospital, conveniado ou contratado – o que é caro”.
Baixo gasto tem impacto em indicadores
No estudo do Conselho Federal de Medicina (CFM) sobre as despesas em saúde também foram cruzados com dados oficiais, como oferta de leitos para cada grupo de 800 habitantes e cobertura populacional de Agentes Comunitários de Saúde (ACS) e Equipes de Saúde da Família (ESF) e indicadores epidemiológicos (taxas de incidência de tuberculose e dengue).
Também foi apurado o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) – que mede esta dimensão a partir de dimensões como o acesso à saúde de qualidade. Os números apontam para uma forte tendência de que os que destinam menos recursos per capita para a saúde apresentem, sobretudo, baixo desempenho no IDH.
É o caso, por exemplo, do Pará – um dos piores colocados no quesito de aplicação per capita (R$ 0,74 ao dia), seguido do Maranhão (R$ 0,77). Ambos também estão entre as piores posições em relação ao IDH (25º e 26º lugar entre os Estados brasileiros, respectivamente). Muitas vezes, o desembolso financeiro se reflete em vários outros índices, como o número de leitos e de incidência de doenças. Nos casos citados, ambos também estão abaixo da média nacional – de 1,73 leitos por 800 mil habitantes. Eles são os 18º e 20º piores colocados entre os 27 Estados.
As capitais e municípios de maior e menor porte também tendem a apresentar essa correlação. Salvador (BA), Macapá (AP) e Rio Branco (AC) são as capitais que menos aplicam recursos em saúde. Todas estão abaixo da média nacional em indicadores como leitos e IDH. Enquanto o melhor IDH é o de Florianópolis (1,555) e a média entre as capitais é de 0,777, Rio Branco (AC) registra IDH de 0,727, Macapá (AP) aparece com 0,733, e Salvador com 0,759. O pior IDH – de 0,649 – é verificado em Boa Vista (RR). Em consonância com a percepção de que o gasto em saúde tem forte impacto no bem-estar de uma população, a capital roraimense é uma das piores colocadas (22º lugar) quando o assunto é o gasto per capita em saúde.
Na avaliação do coordenador da Comissão Nacional Pró-SUS do CFM e conselheiro federal pelo estado do Paraná, Donizetti Giamberardino, há uma desigualdade muito grande entre os indicadores de saúde e também no gasto em saúde, seja nos estados ou nas capitais. “Temos um sistema público de saúde que deveria observar princípios fundamentais como universalidade, equidade e integralidade, mas que está sujeito a tantos fatores – e o investimento talvez seja um dos mais importantes deles – que acaba sendo desigual e até injusto em alguns lugares”, criticou.
Giamberardino faz referência ao indicador de leitos hospitalares, por exemplo, que revela uma oferta proporcionalmente menor nas regiões Norte e Nordeste. “Esse fenômeno da queda do número de leitos já foi constatado pelo CFM em levantamentos anteriores e, havendo redução de recursos no setor e aumento da população, a tendência é que a essas proporções caiam ainda mais”, disse.
Também é possível verificar impacto, em alguns casos, em indicadores como cobertura de Equipes de Saúde da Família e Agentes Comunitários de Saúde. Por exemplo, entre as 14 capitais abaixo da média de cobertura de ESF, oito (57,14%) também estão abaixo da média de gasto per capita. O mesmo se verifica entre as 16 capitais abaixo da média de cobertura populacional de ACS – dez delas (62,5%) também estão abaixo da média de gasto.
“Interessante observar que nos estados ou capitais onde a cobertura de ESF e ACS é relativamente melhor, o gasto per capita não aparece entre os de melhor desempenho. Isso nos leva a crer que os gestores estão priorizando a atenção básica. O problema é que, se a atenção básica não for resolutiva, você terá um cidadão que não encontrará nos níveis secundários ou terciários estrutura para resolver o seu problema”, alertou o coordenador da Pró-SUS.
Entre os Estados, a mesma verificação: dos 17 que estão abaixo do IDH nacional (de 0,727), dez (58,8%) também apresentam os piores índices de gasto per capita (abaixo da média entre os Estados). Esta correlação permanece entre os piores em cobertura populacional de agentes comunitários de saúde. Sessenta por cento deles também apresentam desempenho abaixo da média quando se verifica o gasto em saúde.
Fonte: CFM