28/06/2021
Guilherme Murta
Projeto de Lei propõe acabar com obrigatoriedade de exames ocupacionais - um retrocesso para o trabalhador. Dispensar o trabalhador, independentemente de risco laboral, de ter garantidas as avaliações
O Projeto de Lei 1083/2021, que tramita na Câmara dos Deputados, tem a proposta de alterar o artigo nº 168 da Consolidação das Leis do Trabalho. O documento propõe acabar com obrigatoriedade de haver exames ocupacionais (admissional, periódico, demissional, mudança de função, retorno ao trabalho) caso o trabalhador não esteja elencado nas seguintes opções: idoso, gestante ou lactante, portador de deficiência, portador de doença crônica, atividade insalubre, periculosa ou penosa.
Algumas das dificuldades na aplicação estão implicitamente dispostas no próprio projeto. Como o empregador conseguirá identificar, desde o exame admissional, se o colaborador é portador de doença crônica? Além disso, o termo doença crônica é mais amplo do que apenas patologias graves. Uma simples rinite alérgica pode se caracterizar como doença crônica, que poderia estar incluído nos exames obrigatórios. De outro lado, situações com potencial repercussões mais graves, identificadas apenas por meio de avaliação médica, podem ser dispensadas pelo PL de realizar exames, como será discorrido adiante.
Os termos insalubridade e periculosidade, têm relação com o pagamento destes adicionais gerados por riscos específicos conforme dispostos nas normas regulamentadoras 15 e 16. Para haver o pagamento por insalubridade, em muitos casos, deve haver exposição a agente de risco acima do limite de tolerância. Porém, o limite de tolerância (LT) não funciona para todas as pessoas como um limite estático entre haver o adoecimento ou não adoecer frente ao risco laboral. Não por acaso há indicação de aplicar medidas protetivas, tanto de segurança do trabalho (como EPIs) como em saúde ocupacional (exames complementares específicos), quando as doses ultrapassarem o nível de ação (metade da dose do LT). Portanto, a PL ao considerar a insalubridade/periculosidade como regra balizadora de exames médicos, muitos trabalhadores que podem ter exposição prejudicial à saúde não seriam monitorados, o que potencialmente causa prejuízos à saúde dos trabalhadores. Também, representa um passivo trabalhista ao empregador já que o adoecimento ocorre dentro da empresa e não há meios de identificar nem de impedir a persistência de contaminação nos trabalhadores.
Há de se considerar que, mesmo se a PL se constituir em lei, os riscos ocupacionais continuarão a ser mapeados pelo Programa de Prevenção de Riscos Ambientais (Norma Regulamentadora 9, futuro Programa de Gerenciamento de Riscos) e dispostos para o Programa de Controle Médico de Saúde Ocupacional (PCMSO) a fim de indicar medidas para prevenção de doenças. Apresenta-se um conflito: de um lado há indicação técnica para prevenção de doenças, em que o exame médico (avaliação clínica) é um fundamento, e de outro um projeto de lei que desobriga a empresa manter e custear esta prática. Mesmo que o médico responsável pelo PCMSO possa manter a indicação de exame clínico, na prática é provável que, em havendo ônus financeiro sem obrigatoriedade legal, a empresa possa entender que não é obrigada a custear esta prática.
Quanto ao trecho referente à caracterização de pessoa com deficiência (PCD) a situação é ainda mais complexa. Mesmo para profissionais de saúde, a conclusão sobre caracterização de uma pessoa como deficiente não é tarefa simples. Exige uma coordenação entre o achado de exame e o conhecimento legal de caracterização. Imaginar que o empregador, leigo na área, terá segurança para caracterizar um colaborador como PCD e a partir disso encaminhar para exame admissional ou periódico é um devaneio. Não por acaso, as fiscalizações que abordam as cotas de PCDs exigem documentação médica comprobatória. De outro lado, dispensar de avaliação médica é uma oportunidade perdida para o empregador de identificar possíveis PCDs que até então não se consideravam como tal. Para empresas que não atingiram as cotas exigida por lei constituem-se mais um prejuízo.
Em relação a mulheres gestantes, há inúmeros fatores que podem levar uma mulher a omitir sua situação junto aos colegas de trabalho. Na admissão, por exemplo, é nítido o receio de não ser empregada ao se declarar grávida, sendo a informação omitida. Assim, será admitida sem manifestar a gestação, não realizando exame médico. Neste caso, também há uma consequência com prejuízos ao embrião caso tenha alocação em área com produtos químicos teratogênicos, provocando o nascimento com deformidades ou mesmo abortamento. Hoje, ao passar em exame médico, a gestante tem uma boa oportunidade de manifestar a gravidez evitando todas estas mazelas.
Além dessas divergências intrínsecas da formulação do Projeto de Lei há ainda um estímulo ao retrocesso quanto às boas práticas de prevenção de doenças. Mesmo não caracterizando insalubridade, periculosidade ou penosidade, o modus operandi de deixar de realizar avaliações em população exposta a riscos tende a doenças relacionadas ao trabalho sem diagnóstico precoce e terapêuticas mais resolutivas. Por exemplo, um trabalhador exposto a produto químico não classificado como insalubre, mas com efeito tóxico pode perder a oportunidade de detecção precoce. E não apenas isso. Por ter característica de intoxicação crônica, progressiva, não será incomum observar a evolução da doença silenciosa a tal ponto que ao tornar-se clinicamente sintomática seja irreversível. Há agentes de risco que têm esta característica e que os trabalhadores estão expostos, sendo controlados periodicamente por exames ocupacionais. Quando um quadro assim é identificado atualmente, comumente consegue-se evitar a exposição recorrente ao risco e proceder a avaliação médica com maior profundidade, o que evita maiores prejuízos à saúde. Também é comum a identificação de que o agente possa estar afetando ou afetar outros empregados e impedir esta contaminação populacional. O seguimento do PL representa mais uma consequência grave na contramão da boa prática prevencionista.
Como uma das justificativas que constam no PL – “A redação atual da CLT exige tais exames mesmo para atividades que não têm maior risco laboral. O resultado é que a contratação de um empregado se torna mais burocrática e cara” - acredito que o argumento de desburocratizar no que é possível é valido. Porém, ação neste sentido já foi contemplada na Norma Regulamentadora número 1 atualizada recentemente, em 2020, onde consta: "1.8.6 O MEI, a ME e a EPP, graus de risco 1 e 2, que declararem as informações digitais na forma do subitem 1.6.1 e não identificarem exposições ocupacionais a agentes físicos, químicos, biológicos e riscos relacionados a fatores ergonômicos, ficam dispensados de elaboração do Programa de Controle Médico de Saúde Ocupacional - PCMSO." Esta medida teve intenção de reduzir a burocracia e os custos, nos casos de empresas de menor porte e sem riscos ocupacionais. Apesar de haver críticas, entendo como uma forma de contribuir para reduzir custos do empregador. Entretanto, não ousou eximir de realizar minimamente os exames médicos "A dispensa do PCMSO não desobriga a empresa da realização dos exames médicos e emissão do Atestado de Saúde Ocupacional - ASO".
A outra justificativa que consta para o avanço da PL é uma afirmativa que macula de forma geral a medicina laboral: "Ainda, foi gerada uma indústria de medicina laboral que se sustenta através da realização dos exames que, no mais das vezes, são superficiais e desnecessários". O médico do trabalho é profissional altamente qualificado que obrigatoriamente deve ter passado pelo concorrido vestibular de medicina, ter êxito nos seis anos de faculdade, passar na prova de classificação para residência médica ou especialização em medicina do trabalho e ainda, para conseguir o título de médico do trabalho pela Associação Médica Brasileira, precisa ser exitoso em uma prova de título de especialista, análogo ao que ocorre com as outras especialidades médicas. Se não bastasse, as atividades da medicina do trabalho, especialmente em grandes empresas ou em situações específicas, têm constantes fiscalizações pelos órgãos públicos (ministério da economia, ministério público do trabalho) que cobram a qualidade alinhada à legalidade. Convenhamos que esse cenário propicia uma qualidade que está longe de ser superficial.
Evidente que há profissionais bons e ruins tecnicamente, desatualizados, bem como há os éticos e não éticos em qualquer profissão. Generalizar e desabonar a medicina do trabalho, com séculos de história e mundialmente reconhecida, como uma indústria que realiza exames superficiais e desnecessários além de ofensivo é inadequado. É notório que o caráter preventivo de doenças e promotor de saúde é capaz de salvar vidas. Ainda evita mortes ao identificar situações propícias para acidentes. É uma medida protetiva para o trabalhador e também para o empresário. Além de contribuir no papel prevencionista de patologias ainda reduz a chance de ocorrer um passivo trabalhista por ocorrência de acidente ou doença ocupacional que pode comprometer decisivamente a pessoa jurídica, de todos os portes.
Dispensar o trabalhador, independente de risco laboral, de ter garantidas as avaliações médicas ao longo da sua vida profissional é retirar um direito adquirido. Para muitos colaboradores é uma oportunidade ímpar de ter um horário reservado periodicamente para ser avaliado por um médico especializado em saúde do trabalhador, sem ter custos. Mesmo para pessoas assintomáticas, contar com consultas de rotina é recomendável para evitar doenças e promover saúde. Em saúde do trabalhador ainda mais.
*Guilherme Murta é especialista em Medicina do Trabalho pela AMB/CFM. Mestre em Ensino nas Ciências da Saúde. Membro do Grupo de Diretrizes da ANAMT, Ex-Presidente da APAMT. Professor no MBA Executivo na Fundação Getúlio Vargas (FGV) e Especialização de Medicina do Trabalho UFPR. Professor no curso de extensão de Saúde Corporativa do Hospital Alemão Oswaldo Cruz.
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