Em tempos de importação
de médicos, italiano narra sua experiência trabalhando no país
clique para ampliar>Marco Delazzo é formado em Medicina pela Universidade de Pavia (Itália), com especialização
em Anestesiologia e Terapia Intensiva pelo programa de residência do Hospital San Matteo di Pavia. Atualmente, é
anestesista do Buckinghamshire Healthcare Trust, em Oxfordshire – Inglaterra. (Foto: Arquivo pessoal)
Como um médico estrangeiro
vê o SUS? A pergunta me foi proposta como tema de reflexão em um momento bastante decisivo para a saúde
pública brasileira. Sou um anestesista italiano e já trabalhei nos sistemas de saúde da Itália,
Brasil e Inglaterra, onde atualmente me encontro. Aceitei o desafio de contar a minha experiência brasileira, esperando
contribuir positivamente para a nação que me presenteou com esposa, filho e tantos amigos e para onde pretendo
voltar em breve com a família. Um percurso que preferi dividir em tópicos, na estrutura a seguir.
A revalidação
A minha história
no Brasil começa em 2006, ano em que, recém-formado, me mudei para o país. Na época, tentei revalidar
o meu diploma pela Universidade Federal da Bahia. Apresentei todos os documentos exigidos pela Faculdade de Medicina da UFBA
– horas de tirocínio, disciplinas cursadas, visto de permanência no país, certificado de proficiência
da língua portuguesa nível avançado, entre outros. A análise do meu diploma, segundo o colegiado
do curso, ocorreria em seis meses, enquanto a prova de conhecimento seria a etapa seguinte. No entanto, após exaustivos
11 meses tentando obter uma resposta dos encarregados pelo processo de revalidação da faculdade, entendi que
não existia o interesse em revalidar o diploma de médico estrangeiro, independentemente do país de origem.
Sem perspectiva de exercício da minha profissão no Brasil, voltei para a Itália com a família
brasileira, onde iniciei o Programa de Residência em Anestesiologia e Medicina Intensiva. A revalidação
do meu diploma só aconteceu quatro anos mais tarde, através da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT). Nesta
instituição, a faculdade de medicina demonstrou maior organização e clareza na análise
do diploma estrangeiro, respeitando, inclusive, os prazos apresentados em edital – o Revalida (Exame Nacional de Revalidação
de Diplomas) só surgiria no ano seguinte.
O ano de 2010 foi também
quando pisei pela primeira vez em um hospital brasileiro, cursando o último ano de residência no Hospital Santa
Izabel – considerado um dos maiores hospitais filantrópicos da Bahia. No período, tive a oportunidade
de conhecer profissionais altamente qualificados, bem como o alto nível dos programas de capacitação
do médico brasileiro de diversas áreas. Muitos seriam os colegas que, no ano seguinte, eu reencontraria nos
serviços do Sistema Único de Saúde.
Hospitais públicos
Já no SUS, trabalhei
na Maternidade de Referência José Maria de Magalhães Netto, além dos hospitais do Subúrbio
e Roberto Santos (todos localizados em bairros pobres da periferia de Salvador). Neste último, que também é
hospital escola, convivi diariamente com infraestrutura inadequada. O problema não era a falta de médicos nos
serviços, mas o excesso de pacientes, que superlotavam o hospital. Eram pessoas provenientes de diversas cidades baianas,
que buscavam atendimento em Salvador devido à escassez de hospitais de alta complexidade na região. Assim, vi
a Emergência do Roberto Santos com, pelo menos, três vezes a capacidade do serviço. Nesse mesmo hospital,
assisti colegas de diferentes especialidades trabalharem em condições que poderia definir heroicas, obtendo
ótimos resultados nos procedimentos mesmo com recursos limitados.
Na maternidade, testemunhei
vários casos de morte perinatal. Situações em que mães enfrentaram horas de estrada em busca de
um leito de hospital quando já estavam em trabalho de parto. Nestes casos, não era a estrutura da Magalhães
Neto o problema – unidade gerida por organização social (OS) e que considero de bom padrão, com
equipes formadas por ótimos profissionais. A culpa, na verdade, era da falta de maternidades de alta complexidade conveniadas
ao SUS no interior do estado e da dificuldade de transporte de pacientes em caráter de emergência.
No Hospital do Subúrbio
Considerado a primeira
parceria público-privada (PPP) no Brasil na área de saúde – tive a oportunidade de exercer a minha
profissão com um padrão igual ou talvez superior à média dos hospitais europeus. As equipes das
diferentes áreas conseguiam atuar de uma forma organizada e harmonizada, mesmo enfrentando diariamente um alto número
de casos de trauma de alta complexidade.
Comparação
com o serviço inglês
Desde janeiro de 2013,
trabalho para o serviço público de saúde inglês (NHS). Na Inglaterra, assim como na Itália
e em outros países da União Europeia (EU), as equipes médicas são dedicadas a um provedor como
emprego primário. Ou seja, o médico é funcionário do hospital com carga horária fixa e
direitos trabalhistas garantidos. No Brasil, os médicos não têm direito a adoecer. Os que adoecem, não
dão plantão e ficam sem salário.
Nos hospitais ingleses,
os enfermeiros desempenham mais funções práticas do que no Brasil, onde assumem papel mais burocrático.
Nesse sentido, esses profissionais acabam sendo mais especializados em suas áreas de atuação na Inglaterra,
garantindo todo o apoio necessário durante os procedimentos. Esse fator faz com que os atendimentos aconteçam
de forma mais dinâmica, aumentando a eficiência dos serviços e a segurança no trabalho. Aliás,
eficiência é uma palavra de ordem na saúde pública inglesa, na qual as estruturas são mais
bem organizadas do que no Brasil, e os recursos, melhor aproveitados.
Na Inglaterra, existem
muitos médicos estrangeiros, oriundos de países da UE ou das ex-colônias britânicas, onde o sistema
de educação e as faculdades de medicina foram implantadas pelos próprios ingleses. Ainda assim, quem
vem de fora não trabalha sem a supervisão de um coordenador ou superior da casa. Pelo menos, não até
comprovar estar suficientemente preparado. Aqui não é possível assumir sozinho uma estrutura de saúde,
mesmo em áreas mais remotas, sem antes comprovar na prática a competência para tal.
No Brasil, com a experiência
negativa que tive na primeira tentativa de revalidação do diploma pela UFBA, reconheço que o país
avançou bastante quando criou o Revalida, tornando o processo claro e possível de ser superado. Não entendo
porque abolir agora o exame para a admissão de alguns médicos estrangeiros. Por que não exigir a comprovação
da capacidade para o exercício da medicina? Por que não usar o Revalida para atestar e, assim, garantir a qualidade
dos profissionais que irão trabalhar no Brasil? Afinal, eles serão os médicos que atuarão provavelmente
sozinhos em estruturas ainda mais precárias do que descrevi acima.
Os médicos estrangeiros
também precisam falar a língua corrente no país. É assim no Reino Unido. Fator mais que compreensível,
visto que a medicina depende da comunicação entre paciente e médico. Assim como no Brasil, por exemplo,
é preciso falar bem o português para entender os regionalismos. Afinal, qual dicionário explica o significado
de “espinhela caída”?
Em compensação,
talvez por um aspecto cultural pertencente aos neolatinos, vejo que os profissionais brasileiros conseguem lidar melhor com
as adversidades, com uma maior capacidade de problem solving em comparação aos ingleses. E, apesar de todas
as dificuldades do SUS brasileiro, lembro com felicidade das vezes em que voltei para casa no Brasil com a sensação
de que os procedimentos realizados naquele dia não deixavam a desejar em nada aos realizados na rede privada, mesmo
que esta oferecesse melhor estrutura e condições de trabalho.
O Brasil é, sem
dúvida, o país que me fez sentir, mais do que qualquer outro, a importância da minha profissão
e o papel social do médico. O reconhecimento não vem das autoridades, mas do paciente. Essa sensação
de missão cumprida, de ter feito bem a quem realmente precisa, eu conheci, de fato, no Brasil.
*Marco Delazzo é
formado em Medicina pela Universidade de Pavia (Itália), com especialização em Anestesiologia e Terapia
Intensiva pelo programa de residência do Hospital San Matteo di Pavia. Atualmente, é anestesista do Buckinghamshire
Healthcare Trust, em Oxfordshire – Inglaterra.