04/07/2006
Estou bem de saúde...
A pessoa que falava com o médico era uma mulher. Ela iria morrer e sabia disso. Era minha amiga.
AO ler meu último artigo muitos amigos concluíram que eu estava morrendo e ficaram aflitos. Também pudera, o artigo foi
escrito na primeira pessoa... Peço perdão. Não foi de propósito.
Mas a culpa não foi minha. Foi do jornal. O jornal dá um espaço definido ao escritor, no meu caso 2.900 toques. Mas a
cabeça não tem um contador de toques. Vou escrevendo. Depois de escrever peço ao computador que me diga quantos toques há
no meu artigo. Ele responde: 3.486. O que significa que tenho de cortar. Releio o artigo e vou cortando. Pois foi isso que
aconteceu: tive de cortar a explicação inicial para que o artigo ficasse dentro dos limites. Nessa explicação eu contava como
é que ele havia nascido. Nasceu de um pedido de um amigo, médico. Ele me disse que o Conselho Federal de Medicina estava interessado
em produzir uma literatura curta, incisiva, poética, sobre questões éticas e de relacionamento médico-paciente, para ser distribuída
entre os médicos. Então ele me perguntou: "Rubem, você pode escrever um texto sobre um médico diante de uma pessoa que vai
morrer?"
Eu e esse médico temos tido longas conversas sobre o morrer. Um médico e um pastor evadido têm muitas experiências a
compartilhar. Como é o caso do menininho que ia morrer e apertava a sua mão dizendo: "Tio, é tão difícil morrer. Me ajude
a morrer..." Contou-me um outro caso que produz sorrisos. Nada tem a ver com a morte. Tem a ver com o amor. Eu o relato pela
sua beleza. Ele era médico num leprosário. As enfermeiras eram freiras. Estariam ali pelo resto de suas vidas. Aí uma delas
teve uma infecção urinária. Teve de fazer um exame de urina, rotina médica. O exame deu o que se esperava. Com algo extraordinário,
jamais imaginado: a urina da freira estava cheia de espermatozóides. O amor é como o capim, cresce até nas pedras. Se você
fosse o médico laboratorista o que é que você faria?
Colocaria essa informação na folha com os resultados do exame? Pelo
que entendi o laboratorista não colocou... A verdade, por vezes, é mais mortífera que um punhal. Como disse o apóstolo Paulo,
é preciso que a verdade seja dita ou silenciada em função do amor. A verdade se subordina ao amor.
Na primeira versão do artigo a pessoa que falava com o médico era uma mulher porque foi assim que aconteceu. Ela iria
morrer e sabia disso. Era minha amiga. Fui visitá-la. Cheguei à porta do quarto. Ela estava sozinha, deitada, voltada para
a janela. Percebeu a minha presença. "Rubem, venha mais perto..." Assentei-me diante dela em silêncio. Aí ela me fez a terrível
pergunta: "Rubem, será que eu escapo dessa?" Eu poderia ter mentido: "É claro que você vai escapar. Você vai ficar boa logo..."
Com isso eu me livraria da sua terrível pergunta. Mas ela saberia que eu estava mentindo. Poderia, ao contrário, ter dito
a verdade: "Não, você não vai escapar. Você vai morrer..." E com isso se criaria uma enorme distância entre nós. Percebi que
sua pergunta brotava de um abismo de medo e solidão que enchia a sua alma. Aí a resposta me veio: "Você está com medo de morrer.
Eu também tenho medo de morrer..." Conversamos então longamente sobre nossos medos, duas pessoas unidas pelo fato de que ambas
têm medo de morrer. O seu maior medo era medo da saudade: lá num outro mundo, tão longe das pessoas que amava... Foi dessa
experiência que o artigo nasceu. Duas semanas depois ela morreu. Mas eu fiquei vivo para contar a estória...
Artigo publicado no caderno Cotidiano do jornal Folha de S.Paulo em 04/07/2006.