23/05/2007
Escolas médicas: estelionato contra a sociedade
Preocupa-me, sobremaneira, assistir o ensino médico ser transformado num verdadeiro negócio mercantilista sem que se vislumbre
um horizonte menos sombrio.
Como entender, por exemplo, que dias atrás, o MEC, de uma só vez, autorizou por portarias a criação de cinco novas escolas
médicas - uma em Maringá/PR (sub judice), outra em Belo Horizonte e três em São Paulo. Como aceitar que, somente neste começo
de século, o mesmo MEC tenha permitido a criação de 66 novos cursos, totalizando em todo o país 167 escolas médicas (98 delas
pertencentes à rede privada). Com isto, o Brasil ocupa hoje o segundo lugar no ranking mundial de escolas médicas, perdendo
apenas para a Índia (202), mas colocando-se à frente da China com 150 e dos EUA que têm 125 escolas, mantidas assim há alguns
anos. Como imaginar ser possível a esses novos cursos garantir a qualidade do ensino, a maioria sem professores habilitados,
sem hospitais.
Surpreendeu-me ler na edição da Gazeta do Povo de 2 de maio uma notícia informando a visita de representantes do MEC para
avaliar mais quatro cursos de medicina "a serem criados" no Paraná, todos pertencentes à rede privada. Não há necessidade
social deles em nenhum dos municípios citados: Curitiba, Ponta Grossa, Foz do Iguaçu e Cascavel. E o que dizer da inafastável
garantia de qualidade para o ensino a ser oferecido por essas instituições?
Nosso país caminha para o que os EUA passaram em 1906 com 160 escolas de medicina, sem currículo regulamentado, sem corpo
docente qualificado, mercantilizando o ensino médico. Algumas até vendiam diplomas. Diante desse quadro dantesco, as autoridades
daquele país tomaram uma posição. A Fundação Carnegie para o Avanço do Ensino foi buscar em Abraham Flexner, não médico, professor
de grego, a pessoa indicada para a missão de resolver esse grave problema. Flexner, de 1906 a 1910, visitou uma a uma das
160 escolas médicas e, ao final, elaborou um extenso relatório, que se consagrou como o famoso Relatório Flexner. Suas proposições
foram seguidas à risca durante 23 anos e em 1933 já tinham sido fechadas 94 escolas, reduzindo drasticamente esse número para
66. Durante esse período, Flexner chegou até ser ameaçado de morte por setores afetados pelo seu trabalho. A repercussão foi
tamanha que o ano de 1933, quando a última escola foi fechada, tornou-se um marco no país. As escolas, então, passaram a ser
confiáveis, oferecendo as inafastáveis garantias de qualidade de ensino da medicina. Foi estabelecido, também, que a licença
para a prática da medicina na América do Norte somente seria concedida após um processo de aferição da capacitação e a aprovação
do médico no State Board.
Desta forma, é urgente uma tomada de posição das entidades de classe e do Congresso Nacional. A única saída, no momento,
é a suspensão da criação de novos cursos de medicina pelo menos por cinco anos, enquanto se organiza e legaliza critérios
mínimos para abertura de escolas e avaliação das já existentes. Ao mesmo tempo, os vestibulares e novas matrículas naquelas
que não atendam aos requisitos mínimos ou que sejam comprovadamente irrecuperáveis seriam suspensos.
Saulo Ramos, quando consultor-geral da República, em 1988, dizia em um de seus pareceres: "Não se pode permitir, isto
sim, o desabamento da estrutura do ensino brasileiro com a instalação de cursos de medicina sem mínimos recursos, sem hospital
na região, sem corpo docente, sem bisturi. O dever do Estado é ministrar a educação e, no curso superior, assegurar o conhecimento
científico que irá, efetivamente, beneficiar a comunidade. O simples diploma não cumpre esta finalidade; antes, seria um estelionato
contra a sociedade e uma grave lesão à teologia constitucional."
Antonio Celso Nunes Nassif é médico, professor adjunto e livre docente aposentado da UFPR. Foi presidente da Associação
Médica Brasileira.
Fonte: Gazeta do Povo.