21/07/2006
Erro da política de saúde mental
Há um grande equívoco no Programa de Saúde Mental do Ministério da Saúde, que impede qualquer avanço nessa área. Por desinformação
ou interesses ocultos, os dirigentes do programa desmantelaram esforços de muitos anos, promovidos por pessoas realmente comprometidas
com a saúde mental. O planejamento passou a ser desenvolvido a partir de antigos preconceitos e com viés populista.
O equívoco começou a se desenhar quando elegeram como prioridade a desospitalização de portadores de transtornos mentais.
Para justificar essa atitude, obviamente, foram obrigados a adotar o discurso de que a internação psiquiátrica não é um procedimento
adequado - o que não é verdade. A psiquiatria precisa de internações e de atendimento em centros especializados, tanto como
a ortopedia e a cardiologia.
A argumentação oficial, porém, fugiu de critérios clínicos e foi fundamentada na percepção equivocada, construída durante
anos, de que todos os internos em unidades psiquiátricas sofrem maus-tratos. Para isso ressuscitaram o conceito de manicômio
e toda a carga pejorativa que acompanha a palavra. A discussão ganhou o aspecto sensacionalista que essa abordagem é capaz
de despertar. Animados com a repercussão, os servidores resolveram encenar o roteiro. Para materializar a mensagem de sucateamento
da área de saúde mental, passaram a contingenciar recursos e, conseqüentemente, muitas instituições fecharam as portas, e
o atendimento começou a enfrentar dificuldades graves, em razão da asfixia financeira. E foi essa situação que teve destaque
na mídia.
Em seguida, numa movimentação batizada de "reforma psiquiátrica" (como se a especialidade médica necessitasse de reforma...),
fecharam leitos em hospitais públicos - vejam bem, públicos - e posaram de "salvadores da pátria" para os flashes. Quem precisa
de reforma é o modelo assistencial, não os médicos.
Na mais recente medida em busca da unção popular, atraíram a Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da
República para a assinatura de uma portaria interministerial que trata de saúde mental. Mais explícito o objetivo, impossível.
Conseguiram oficializar a relação entre tratamento de transtornos mentais com os maus-tratos.
O resultado disso tudo, que não aparece nos jornais, é preocupante. O Programa de Saúde Mental ignorou anos de pesquisa
científica que atestam a internação como procedimento adequado. Em muitos casos, a única medida indicada. A Coordenação de
Saúde Mental do Ministério da Saúde também não considerou que a psiquiatria, como qualquer outra especialidade médica, utiliza
procedimentos com diversos graus de complexidade, desde uma simples consulta até intervenções cirúrgicas e internação.
Não atentaram ainda para o atual nível da psiquiatria brasileira, que se esforçou durante anos para formar profissionais
capacitados, desenvolver pesquisas e aparelhar instituições para que os tratamentos, inclusive a internação, fossem conduzidos
de maneira apropriada em locais adequados. Como existem em todo o Brasil serviços públicos estaduais, serviços em universidades
conceituadas ou de instituições filantrópicas que funcionam muito bem.
Além disso, bem à maneira das resoluções casuísticas, o plano governamental não apresentou alternativas viáveis para a
continuação do tratamento dos pacientes desalojados com o fechamento dos leitos. Muitos simplesmente voltaram para casa e
ficaram sem assistência médica, pois o modelo apresentado pela Coordenação de Saúde Mental se mostrou caro e de difícil implementação,
sem contar a política equivocada de medicamentos importantes que não são custeados durante a internação e, em alguns casos,
não são oferecidos à população nem mesmo no ambulatório, ou em qualquer outro equipamento de saúde.
Porém, o pior estrago é impossível de medir em números. O programa foi capaz de reacender o preconceito em relação à doença
mental, principal dificuldade enfrentada pela psiquiatria no Brasil. Após a lavagem cerebral promovida pela atual política,
por exemplo, mesmo quando há condições de infra-estrutura e diagnóstico médico recomendando o procedimento, muitos familiares
impedem a internação de pacientes, prejudicando sua reabilitação. E esse é apenas o efeito mais palpável.
Estimulou-se o estigma contra doentes, familiares e até médicos - sentimento que impede a socialização dos pacientes,
fator fundamental em sua recuperação; dimensiona o problema para as pessoas próximas; e desestimula os profissionais da área.
Nos últimos anos, as sugestões dos psiquiatras foram repetidamente desconsideradas pela Coordenação de Saúde Mental do
ministério. Representada pela Associação Brasileira de Psiquiatria, a classe defende a necessidade urgente da promoção de
campanhas de esclarecimento público. A sociedade precisa ser informada sobre os diversos aspectos dos transtornos mentais
e seu tratamento. Qualquer política será inócua enquanto se considerar os doentes como "loucos" passíveis de exclusão. E esse
é apenas o primeiro passo para colocar o barco na direção correta e recomeçar do zero.
Estimativas demonstram que 15% da população convivem, ou conviverão, com transtornos mentais. Se incluirmos os familiares,
que sofrem tanto ou mais por conta do preconceito, é possível afirmar que o problema atinge grande parte dos cidadãos. A maioria
dessas pessoas, por falta de informação, é incapaz de lidar com a situação de maneira equilibrada, e grande parte dos doentes,
em conseqüência de ações governamentais equivocadas, não recebe o tratamento adequado.