31/10/2006

Dizer adeus à vida com dignidade e elegância!

"É melhor a morte do que uma vida cruel, o repouso eterno do que uma doença constante" ...Eclo 3, 1-2



Buscamos incansavelmente a felicidade de viver com dignidade e não apenas sobreviver. Fazemos de tudo para combater a doença, a dor, o sofrimento e vencer a própria morte. Estamos cada vez mais aparelhados pelas inovações tecnológicas nesta empreitada. Num lance de "ilusão utópica" podemos até acreditar que a realidade do morrer não faz parte de nosso existir, pensamos e agimos como se fôssemos imortais.

Ouvimos freqüentemente de doentes terminais, que eles não têm tanto medo de morrer, mas sim de sofrer. O que eles temem na verdade é processo do morrer, marcado pela dependência, a impotência e dor não aliviada que se associam à doença. Enquanto a dor física é a fonte mais comum do sofrimento, o sofrimento ligado ao morrer vai além do mero nível físico, atingindo o todo da pessoa. O enfrentamento da dor exige medicamentos analgésicos enquanto que o sofrimento solicita um horizonte de significado e sentido. A dor sem explicação geralmente se transforma em sofrimento. O sofrimento é uma experiência humana profundamente complexa em que tem um papel fundamental os valores sócio culturais e religiosos. Um dos principais perigos em negligenciar a distinção entre dor e sofrimento é a tendência dos tratamentos se concentrarem somente nos sintomas e dores físicas, como se somente estes fossem a única fonte de angústias e sofrimentos para o paciente.
Esta perspectiva nos permite continuar agressivamente com tratamentos fúteis, na crença de que enquanto o tratamento protege os pacientes da dor física, ele protege de todos os outros aspectos também. O sofrimento tem que ser cuidado nas suas várias dimensões fundamentais ou seja, dimensão física, psíquica, social e espiritual.

Fala-se em legalização da eutanásia. Somos frontalmente contra. Olhando para nossa realidade, o desafio ético é de considerar a questão da dignidade no adeus à vida, para além da dimensão físico biológica, do contexto médico hospitalar, ampliando o horizonte integrando a dimensão sócio-política-relacional.

Somos com freqüência emocionalmente envolvidos por casos dramáticos divulgados pela mídia, que anunciam o direito de todo ser humano a ter uma morte feliz, sem dor, em paz, o que não deixa de ser um ideal a ser nobremente atingido. Perguntamo-nos qual o significado de tudo isso diante da morte violenta de milhares de seres humanos por acidentes, violência e péssimas condições de vida em nossa sociedade. Existe muito o que fazer no sentido de levar a sociedade a compreender que o morrer com dignidade é uma decorrência do viver dignamente e não meramente sobrevivência. Se não se tem condição de vida digna, no fim do processo garantiríamos uma morte digna? Antes de existir um direito à morte humana, há que ressaltar o direito de que a vida já existente possa ter condições de ser conservada, preservada e desabroche plenamente. É chocante e até irônico constatar situações em que a mesma sociedade que negou o pão para o ser humano viver, lhe oferece a mais alta tecnologia para "bem morrer !".

Não somos doentes e nem vítimas da morte. É saudável sermos peregrinos. Não podemos passivamente aceitar a morte que é conseqüência do descaso pela vida, causada pela violência, acidentes e pobreza. Frente a esta realidade é necessário cultivar uma santa indignação ética que nos convoca a um compromisso com a vida vulnerável. Podemos ser, curados de uma doença classificada como sendo mortal, mas não de nossa mortalidade e finitude humanas. Esta condição de existir não é uma patologia! Quando esquecemos isso, acabamos caindo na tecnolatria e na absolutização da vida biológica pura e simplesmente. Insensatamente procuramos a cura da morte e não sabemos mais o que fazer com os pacientes que estão se aproximando do adeus à vida. É uma prática distanásica adiando a morte inevitável. Neste ponto é bom lembrar um adágio francês do séc. XVI ao falar da missão do médico que é "curar às vezes, aliviar freqüentemente, confortar sempre".

Entre dois limites opostos, de um lado a convicção profunda de não abreviar intencionalmente a vida (eutanásia) de outro, a visão para não prolongar o sofrimento e adiar a morte (distanásia). Entre o não abreviar e o não prolongar está o desafio de cuidar do sofrimento. Como fomos cuidados para nascer, precisamos também ser cuidados para morrer. A vida humana, no seu início, bem como no final, é total vulnerabilidade, que nos convoca ao cuidado máximo. Aqui a palavra de ordem é solidariedade, que não se coaduna com autonomia de abreviação de vida. É importante lembrar o que diz Cicely Saunders, fundadora do moderna filosofia de cuidados paliativos: "o sofrimento humano somente é intolerável quando ninguém cuida ". Pergunto-me no caso Vincent Humbert se esta perspectiva tivesse sido adotada, ele não teria desejado a continuar viver re-significando sua vida!


Leo Pessini é Professor doutor em bioética no Núcleo de Estudos e Pesquisas em Bioética do Centro Universitário São Camilo em São Paulo. Membro do Board da International Association of Bioethics, (2001-2005). Autor da obra: Distanásia: até quando prolongar a vida, Ed. Loyola, S. Paulo, 2002.

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