23/09/2013
Leandro Arthur Diehl
“Teu dever é lutar pelo Direito, mas se um dia encontrares o Direito em conflito com a Justiça, luta pela Justiça.” - Eduardo Juan Couture
Os brasileiros que aguardavam ansiosos pelo encerramento do julgamento da Ação Penal 470 no Supremo Tribunal Federal, possibilitando que a punição dos envolvidos no chamado “Mensalão” fosse enfim levada a cabo, tiveram triste notícia nesta semana. A maioria dos ministros do STF acabou votando pela admissibilidade dos chamados embargos infringentes – na prática, uma categoria adicional de recursos que se tornou disponível aos advogados de defesa, e que poderá atrasar ainda mais a prisão dos condenados, ou mesmo levar à redução das suas penas, prescrição de alguns dos crimes ou mesmo absolvição. O sentimento de frustração foi inevitável.
Analisando os votos dos ministros favoráveis à aceitação dos embargos infringentes, observa-se que a maioria dos seus argumentos foi de ordem puramente técnica: apesar de os embargos infringentes não estarem expressamente previstos na regulamentação legal mais atual, essas novas normas também não os extinguiram de maneira tácita, e portanto os ministros entenderam, na sua maioria, que eles deviam ser aceitos. No entanto, muitos brasileiros que vinham acompanhando o processo entenderam essa decisão como um sinal de que o STF pode estar mais preocupado com a letra da lei do que com a finalidade maior da lei, que é possibilitar a aplicação da Justiça. Alguém duvida que os réus da Ação Penal 470 tiveram ampla oportunidade de defesa, nos mais de 6 anos de andamento desse processo? Ou alguém ainda tem dúvidas sobre a mais que suficiente evidência da culpa dos réus, dado o montante de provas que foram juntadas desde 2007, que já somam mais de 500 testemunhas e 50 mil páginas de autos? Então, no caso do Mensalão, a impressão resultante é que, no embate entre o Direito e Justiça, neste caso, prevaleceu o Direito, em detrimento da Justiça, pois a opinião popular clama pela imediata punição dos culpados para diminuir essa amarga sensação de impunidade que já é tragicamente familiar aos brasileiros. O favorecido neste episódio foram os réus: políticos da base governista e seus associados, pois, apesar da possível correção do ponto de vista processual da admissibilidade dos embargos infringentes, na prática, essa decisão vai ter impacto direto e significativo sobre o mérito do julgamento, podendo equivaler, para muitos réus, à sua absolvição.
Mas será que é uma tendência geral, essa de privilegiar a letra da lei, ou a correção do processo legal, mais do que o seu resultado prático? Analisemos outro caso recente: o Ministério da Saúde lançou o Programa Mais Médicos, com o objetivo declarado de levar médicos brasileiros ou estrangeiros para atender no SUS em locais do Brasil onde há carência desses profissionais. No caso dos médicos formados no exterior, o programa prevê a dispensa da revalidação de diploma, um processo que é necessário e obrigatório, conforme regulamentação do próprio Ministério da Saúde, em conjunto com o Ministério da Educação e o das Relações Exteriores. Os Conselhos Regionais de Medicina imediatamente ingressaram com ações na Justiça para fazer valer a norma legal, de forma a que médicos formados no exterior só possam receber licença para exercer a Medicina no Brasil se aprovados no processo de revalidação de diploma. No entanto, neste caso os tribunais demonstraram tendência inversa: a maioria dos juízes decidiu pela dispensa da revalidação de diploma e pelo fornecimento de registro profissional aos profissionais estrangeiros, alegando que a estrita aplicação da lei, neste caso, traria prejuízo aos cidadãos brasileiros que residem em locais onde atualmente não há médico, e que seriam, em tese, beneficiados pela alocação de profissionais da saúde nos seus municípios. (Não entremos aqui no mérito da capacitação técnica dos indivíduos que serão autorizados a exercer a Medicina no Brasil dessa maneira flexibilizada, incorrendo no risco de que pessoas despreparadas recebam autorização para tal, com óbvio perigo aos seus clientes.) Neste caso concreto, no embate entre o Direito e a Justiça, pareceu que os juízes preferiram se pautar pela última, tendo em vista o potencial de prejuízo aos cidadãos, mais do que a rigorosa e estrita aplicação da norma legal que estabelece a obrigatoriedade do processo de revalidação de diploma médico. Quem é o beneficiado neste caso? O ministro da saúde, que está conseguindo fazer valer sua vontade contra a legislação e contra toda a resistência das entidades médicas nacionais, e que pode, com isso, ganhar força e popularidade com vistas à disputa eleitoral de 2014, uma vez que já se comenta que o ministro será candidato do PT ao governo do Estado de São Paulo.
Neste país de imensas contradições, inclusive no âmbito do Poder Jurídico, em que ora os juízes parecem tender à tecnicidade e à letra da lei, ora parecem tender à flexibilização da lei para possibilitar a implementação da Justiça, apenas uma coisa não parece controversa: os beneficiados são sempre aqueles que estão direta ou indiretamente ligados ao poder do governo federal. Infelizmente, a impressão que fica é essa: o que importa, no fim das contas, não é a aplicação literal da norma legal, ou a aplicação da Justiça; o que importa é dar ganho de causa ao governo e seus protegidos.
Artigo de Leandro Arthur Diehl, médico endocrinologista e professor assistente do Departamento de Clínica Médica da Universidade Estadual de Londrina (UEL).