03/11/2006
Desassistência ao dependente químico
A nova lei para lidar com o usuário de drogas, assim como a anterior, é cheia de boas intenções, mas não muda a realidade
MUITA ESPERANÇA foi criada com a aprovação da lei nº 11.343/2006, que estabelece novo arcabouço jurídico para lidar com
o usuário de substâncias ilícitas.
Ela trouxe alguns poucos avanços, entre os quais estão a despenalização do usuário e maiores penas para os traficantes.
Porém, a esperança termina quando pensamos na realidade dos milhões de brasileiros que usam álcool e drogas e necessitam de
ajuda.
Essa nova lei, assim como a anterior, é cheia de boas intenções, mas não muda a realidade. A política do Ministério da
Saúde para prevenção e tratamento dos dependentes químicos tem sido de omissão no atacado e desorientação no varejo. E não
se trata de fazer uma crítica ao atual governo, pois a mesma equipe está nessa função há quase dez anos.
No atacado, não há nada que mais remotamente poderíamos chamar de uma política, com os respectivos recursos, para enfrentarmos
os desafios da prevenção e do tratamento.
Especificamente na prevenção, não é possível encontrar nenhum programa financiado pelo governo federal que inove e traga
alguma expectativa para a família brasileira.
Não temos programas preventivos nas escolas. Não temos programas de apoio ao adolescente em situação de risco, como aqueles
que abandonaram a escola ou que tiveram algum problema com a lei. Não temos programas de apoio às famílias que tenham alguém
com problemas com álcool e drogas antes de precisarem de tratamento psiquiátrico.
Ao conversar com professores e pais, sentimos o desamparo. A comunidade busca compensar a falta de apoio. Indivíduos e
instituições tentam os mais variados programas que eventualmente teriam efeito preventivo. Mas são esforços com efeitos incertos,
pois carecem de consistência técnica e têm incertezas quanto à continuidade por falta de dinheiro.
Não vamos progredir somente com o voluntarismo e os esforços isolados. Precisamos de direção e fonte constante de financiamento.
Os poucos programas de prevenção que existem, financiados pelo Ministério da Saúde, adotam a política de redução de danos.
Um exemplo é fornecer cachimbos "seguros" para usuários de crack.
Esse tipo de ação, que não tem evidência nenhuma que funcione, é o que recebe mais recursos públicos. Se na prevenção
não temos nada -e é justo dizer que nunca houve nada-, na área de tratamento estamos pior que antes.
Dados do próprio SUS, compilados pela Associação Brasileira de Psiquiatria, mostram que o dinheiro para a saúde mental,
no geral, diminuiu em 60% do orçamento da saúde. Essa economia ocorreu porque fechamos 80 mil leitos psiquiátricos e restam
somente 40 mil leitos abertos, que são muito mal remunerados e oferecem uma assistência de péssima qualidade para a população.
Temos menos leitos psiquiátricos do que países como a Itália, que promoveram verdadeira guerra contra a internação para o
doente mental.
Não houve a apropriada ampliação da rede de assistência psiquiátrica ao dependente químico. Foram criados em todo o país
cerca de 80 centros de tratamento, a maioria deles com profissionais com pouco treinamento e baixo número de atendimentos.
Saímos de uma assistência baseada no hospital de péssima qualidade e fomos para uma assistência ambulatorial ridiculamente
insuficiente e de péssima qualidade. A única possibilidade de tratamento por internação são as comunidades terapêuticas que
não recebem dinheiro do SUS.
Desconsidera-se que as pessoas que ficam dependentes de alguma substância padecem de uma doença chamada dependência química.
Essa doença provoca imenso sofrimento a milhões de brasileiros, que acabam tendo como opção de tratamento os grupos de auto-ajuda,
como Alcoólicos Anônimos e Amor Exigente, entre outros. Como exemplo, o Amor Exigente possui mais de mil grupos espalhados
pelo Brasil que atendem 80 mil famílias por semana -sem receber nenhum incentivo do governo.
Para que a esperança deixe de ser um sentimento ingênuo e passe a ser uma resposta de uma sociedade democrática e amadurecida,
precisamos: 1) de um Ministério da Saúde com compromisso com a saúde pública na área de álcool e drogas; 2) de um plano preventivo
de longo prazo com fonte clara de financiamento compatível com a dimensão do problema; 3) que as ações preventivas sejam baseadas
em evidências científicas, e não na visão ideológica do ministério; e 4) que seja um direito de toda família brasileira que
tenha algum dependente químico receber as melhores orientações e tratamento disponível.
RONALDO LARANJEIRA, 49, doutor em psiquiatria pela Universidade de Londres, é professor de psiquiatria e coordenador
da Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).
Fonte: Folha de São Paulo (03/11/2006)