17/12/2017
Donizetti Dimer Giamberardino Filho
"É um equivoco acreditar que médicos em lugares remotos do país, com vínculos de
trabalho transitórios e precários, possam concretizar a interiorização da saúde."
O problema é de conhecimento público e a questão é de alta relevância social: a elaboração responsável de políticas públicas voltadas à carência de médicos nas regiões mais frágeis social e economicamente do Brasil. No entanto, a solução adotada pelo governo federal em 2013 não passou por um debate efetivo com a própria classe médica brasileira e nem sequer pelo processo legislativo mais democrático, considerando que se iniciou por meio de medida provisória (a MP 61/2013), posteriormente convertida na Lei 12.871/2013. Trata-se do Programa Mais Médicos, o qual, entre diversos outros pontos, permite que, através de um acordo de cooperação internacional com a Opas/OMS, os chamados “médicos intercambistas”, formados no exterior, possam obter habilitação para atuar em território brasileiro sem a revalidação de seu diploma acadêmico e sem o registro nos Conselhos Regionais de Medicina. Basta o registro no Ministério da Saúde, sob orientação a distância de um tutor acadêmico.
No caso de Cuba, o Ministério da Saúde firmou o referido convênio prevendo uma sistemática com o repasse de valores à Opas, que direciona parte do montante aos médicos e ao governo cubano. Desde o início do programa, porém, algumas de suas diretrizes centrais não têm sido respeitadas. Por exemplo, em vez da interiorização, médicos estrangeiros têm sido também designados para grandes concentrações urbanas que já contam com elevado número de profissionais brasileiros. O que está ocorrendo, assim, é a substituição de médicos brasileiros por estrangeiros com a precarização de sua condição de trabalhador, facilitando o financiamento dos municípios.
Acrescente-se a tal quadro o insensato aumento do número de vagas em cursos de Medicina sem a devida correspondência com o número de vagas para residência médica. Trata-se de nortear a política pública de saúde segundo a lógica da máxima quantidade, sem controle de qualidade, o que é inaceitável.
O termo de cooperação entre o Estado brasileiro e a Opas resultou na contratação de médicos cubanos recebendo cerca de 30% do valor total da bolsa correspondente a seu trabalho, convertendo-se a diferença de 70% em crédito financeiro para Cuba. Agrava a situação o fato de tais profissionais terem sido obrigados a virem atuar no Brasil com condições que jamais seriam admitidas ou consideradas legais ou constitucionais se trabalhadores brasileiros fossem. São condições que violam o Protocolo de Palermo e diversos dispositivos da Constituição brasileira, a qual corretamente não permite qualquer diferenciação ou discriminação entre brasileiros e estrangeiros – neste caso, médicos sendo convertidos em verdadeiras “mercadorias de exportação”. Não espanta que médicos cubanos estejam pedindo refúgio no Brasil e lutando para receberem a integralidade da sua remuneração e, mais que isso, autenticar sua dignidade, liberdade e acesso a direitos sociais.
O Programa Mais Médicos tem sido defendido por algumas administrações municipais simplesmente porque a substituição de médicos brasileiros por estrangeiros, nessas condições, desonera suas contas. Não se elide os graves problemas que orbitam em torno à violação de direitos do médico estrangeiro como trabalhador, de um lado, e à preocupação legítima da classe médica brasileira com a qualidade de assistência médica, por outro.
A crítica, nesse último ponto, se dirige a um modelo em abstrato que prescinde de requisitos básicos para o controle da qualidade da assistência médica prestada. Ora, não é à toa que a lei brasileira sempre exigiu que todo médico formado no exterior, estrangeiro ou não, para trabalhar no Brasil deva ter seu diploma reconhecido e revalidado.
Foi esse o sentido da interpelação de entidades médicas e sindicais ao Supremo Tribunal Federal, questionando a constitucionalidade do Programa Mais Médicos. Entretanto, em 30 de novembro de 2017, o STF considerou constitucionais os pontos citados, optando por argumentos formalistas e que fogem ao que realmente está em debate. Não se trata apenas de verificar se a exigência de revalidação do diploma está prevista na legislação ou na Constituição, mas sim de analisar a política pública à luz do princípio da isonomia e da garantia do direito à saúde de toda a população. Do mesmo modo, não deveria importar tanto se os valores recebidos pelo médico trabalhador cubano são definidos como “salário” ou como “bolsa”, ou se quem faz tal juízo é a entidade intermediária ou o Brasil, mas simplesmente que, ao fim, há discriminação e precarização na retenção de valores por parte de governo ou entidade estrangeira.
A classe médica toma ciência com perplexidade da decisão da corte suprema, tomada por seis votos a dois. O exercício da medicina realizado em território brasileiro é de responsabilidade do Estado, que atribuiu na forma da lei aos Conselhos de Medicina sua supervisão, fiscalização e julgamento. É um grande equivoco acreditar que profissionais de saúde da atenção básica, nos lugares mais remotos do país, com vínculos de trabalho transitórios e precários, sem estímulo a uma política de fixação desses profissionais em regiões carentes, possam concretizar a política pública de interiorização da saúde que todos desejam. A única via para respaldar o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana na área da saúde é o respeito aos médicos trabalhadores, brasileiros ou estrangeiros, e o respeito à população assistida, através da necessária fiscalização e controle de qualidade.
*Donizetti Dimer Giamberardino Filho é pediatra e conselheiro efetivo representando o Paraná no Conselho Federal de Medicina e também conselheiro do CRM-PR.
**Artigo publicado no Portal e na edição
impressa do jornal Gazeta do Povo de 8 de dezembro de 2017.
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do CRM-PR.