Nos últimos nove anos, o governo federal - que tem defendido novas fontes de financiamento para a Saúde - contabilizou um
orçamento paralelo de R$ 2,3 bilhões que deveriam curar e prevenir doenças, mas escorreram pelo ralo da corrupção. Esse é
o montante de dinheiro desviado da Saúde, segundo constatação de Tomadas de Contas Especiais (TCEs) encaminhadas ao Tribunal
de Contas da União (TCU), entre janeiro de 2002 e 30 de junho de 2011. A Saúde responde sozinha por um terço (32,38%) dos
recursos federais que se perderam no caminho, considerando 24 ministérios e a Presidência. Ao todo, a União perdeu R$ 6,89
bilhões em desvios.
São números expressivos, mas refletem tão somente as 3.205 fraudes ou outras irregularidades identificadas pelo Ministério
da Saúde ou pela Controladoria Geral da União (CGU). Para o Ministério Público Federal (MPF), recuperar esse dinheiro é tarefa
difícil. Mais dramática é a persecução criminal de quem embolsa o dinheiro. Na maioria dos casos, são prefeitos, secretários
de Saúde ou donos de clínicas e hospitais que prestam serviços ao Sistema Único de Saúde (SUS).
A procuradora Eliana Torelly, da Procuradoria Regional da República da 1.ª Região, avalia que é difícil punir porque os
processos, tanto administrativos quanto judiciais, demoram a encerrar. Em 2004, o Departamento Nacional de Auditoria do SUS
(Denasus) levantou um mar de desvios em Paço do Lumiar (MA), município de cem mil habitantes na Região Metropolitana de São
Luís (MA). O processo aponta saques milionários da conta da Saúde, entre 2001 e 2003, que jamais se reverteram em ações à
população. Só em 2010, o processo administrativo chegou ao TCU. Em valores corrigidos em 2010, a fraude soma R$ 27.927.295,70.
- A probabilidade de recuperar o dinheiro é muito baixa - diz Eliana.
No Piauí, má aplicação de R$ 258 milhões
Apenas entre janeiro e junho de 2011, a União encaminhou ao TCU o resultado de 193 processos, que totalizam um passivo
de R$ 562,3 milhões. A expressiva maioria é de casos antigos. Na lista, há cobranças até de 1991, como uma tomada de contas
que aponta o governo do Piauí como responsável pela má aplicação de R$ 258,5 milhões, em valores corrigidos.
Especialista em financiamento da Saúde, o pediatra Gilson Carvalho diz que o dinheiro escorre pela falta de protocolos
e rotinas, falta de informatização do controle financeiro, de pessoal e de transporte de pacientes. E lembra que os empresários
da Saúde são parte do processo de corrupção:
- Não existe corrupção que não tenha participação do privado.
A presidente da União Nacional dos Auditores do SUS, Solimar da Silva Mendes, diz que a estrutura de controle do dinheiro
do SUS é mínima em comparação com o volume de recursos auditado. Ela contabiliza cerca de 500 auditores na ativa, sendo que
a metade está em idade de aposentadoria. Calcula que são necessários outros mil servidores:
- Paramos de atender pedidos do MP. Agora, só fazemos levantamentos a pedido da presidente Dilma Rousseff, como levantamento
de mamógrafos.
Em nota, o Ministério da Saúde afirma que, desde 2002, o orçamento federal da Saúde soma R$ 491,1 bilhões. "Deste modo,
o valor apontado corresponde a 0,045% deste montante. Todas estas medidas administrativas foram solicitadas pelo próprio ministério
aos órgãos de controle, tanto interno quanto externo". Ele cita ainda realização de 692 auditorias, economia de R$ 600 milhões
na compra de medicamentos e aperto no controle dos repasses a estados e municípios.
Mostrando a demora nas ações de controle do dinheiro aplicado na Saúde, só este ano o TCU decidiu sobre casos envolvendo
irregularidades descobertas pela Operação Sanguessuga, iniciada em 2006 pela Polícia Federal. Pelo menos dez decisões do TCU
este ano são sobre Tomadas de Contas Especiais que tratam de desvios em convênios com prefeituras de todo o país, como São
João do Meriti (RJ), Cromínia (GO), Campinápolis (MT) e Ponta Porã (MS). Entre as irregularidades, superfaturamento na aquisição
de ambulâncias, ausência de pesquisa de preços em licitações e erros em notas fiscais. Muitos dos casos envolveram ainda contratos
em que "a empresa fornecedora do veículo adquirido consta da lista de firmas participantes do esquema de fraudes em licitações
identificado na Operação Sanguessuga". É o caso, por exemplo, de contratos das prefeituras de Sousa (PB) e Alegre (ES) com
a empresa Santa Maria, e da prefeitura de Pesqueira (PE) com a Planam.
Para Alcides Miranda, um dos titulares do Conselho Nacional de Saúde e vice-presidente do Centro Brasileiro de Estudos
de Saúde, a discussão sobre a necessidade de mais fontes de recursos para o setor precisa passar pela transparência e garantia
da aplicação dos recursos, sejam os já existentes ou outros que eventualmente surjam. Além dos desvios de recursos apontados
por órgãos de controle como CGU e TCU, Miranda lembra mais uma fonte de desperdício no setor, o Cartão SUS:
- Já foram gastos pelo menos R$ 500 milhões desde o governo Fernando Henrique, e esse projeto de informatização (criando
um sistema com o número de identificação dos usuários do SUS) não anda, por motivos como brigas na Justiça de empresas que
disputavam licitação.
- A própria estrutura do ministério é deficitária - completa a professora da UFRJ Ligia Bahia, da Associação Brasileira
de Saúde Coletiva. - São vários programas, um para criança, outro para hipertenso, outro para a mulher. Só que uma mulher
já foi criança um dia, um hipertenso também pode ser diabético... Não há integração dessa árvore de Natal cheia de programas
pendurados. Falta uma política única para a Saúde no país.
Fonte: href="http://oglobo.globo.com/pais/mat/2011/09/13/de-2002-2011-desvios-de-dinheiro-publico-no-setor-somaram-2-3-bilhoes-925352679.asp"
target="_blank">O Globo
Publicado em 14/09/2011