02/05/2012
"Curso de Medicina na Bolívia: um perigo"
O Conselho de Medicina recebeu, no final do mês de abril, um relato de uma estudante que deseja cursar Medicina e resolveu
arriscar fora do país. A carta abaixo retrata na prática o porquê da preocupação das entidades médicas com as tentativas de
implantação da revalidação automática de diplomas no Brasil. Confira na íntegra o texto, que retrata a opinião da estudante
Claudia da Silva* e da qual compartilham Conselhos de Medicina do Brasil e muitos outros brasileiros atraídos pela promessa
de formação de qualidade:
"Venho por intermédio desta carta, expor minhas opiniões com relação ao curso de medicina ofertado pela Universidade de
Aquino da Bolívia - UDABOL em Santa Cruz de La Sierra, cito esta em específico devido à proximidade que tive. Desejo corroborar
com a discussão acerca do tema.
Sou formada em Serviço Social, pós-graduada em Gestão Estratégica de Pessoas e participante do mesmo sonho que minha irmã,
em nos tornarmos médicas. E foi em razão deste sonho que a saga rumo a Bolívia começou.
Nós (eu e minha irmã) fomos atraídas por diversos enunciados que afirmavam: "o ensino é ótimo, a cidade é maravilhosa
para os brasileiros, o custo de vida é baixo, etc." Tais afirmações ouvíamos, não só pelas universidades de Santa Cruz, mas
também pelos brasileiros que lá estão, e este último é que nos causou preocupação e até um pouco de indignação.
Chegamos em Santa Cruz no dia 01 de março de 2012, fomos direto para a UDABOL, lá precisávamos realizar a matrícula e
entregar a documentação, pois, segundo o site da universidade, as aulas começariam no dia 05. Ao iniciarmos o processo já
começamos a perceber as circunstancias que teríamos de enfrentar, já cobraram de nós 330 dólares (cada) para darem entrada
no pedido de visto, como sabíamos que poderíamos realizar sozinhas dissemos "não", no entanto nos "obrigaram" afirmando que
seria impossível realizar nossa matrícula e que assim perderíamos as aulas, sendo assim, aceitamos e pagamos!
Dia 05 chegou, estávamos ansiosas para termos nossa primeira aula de medicina, fomos para a faculdade e ficamos esperando
em frente a sala enunciada por horas sem que ninguém aparecesse, na terça se repetiu, assim como nos 6 dias seguintes. Nesta
primeira semana fomos reclamar no setor de marketing a respeito da carga horaria e das distribuições das aulas. Pois no site
e no currículo (grade do curso) era exposto que teríamos aulas em período integral de segunda a sábado, quando recebemos nossos
horários, percebemos que teríamos praticamente 1 aula por dia, quando não 2 aulas por dia, sendo cada aula com duração e no
máximo 1h30. Pois bem, disseram que era assim mesmo.
As primeiras aulas foram horríveis, os professores atrasavam demais e ministravam aulas com pouquíssimos conteúdos e com
pouco tempo de duração. Chegando a retrucarem, com estudantes que questionavam os atrasos, a seguinte frase: "Vocês são alunos,
são obrigados a esperarem". Como já cursei um curso de graduação pude comparar, e com isso cheguei a ficar com pena da minha
irmã, a qual sonhara com o curso e estava ali, assustada e pensativa.
A maioria dos professores vendendo livros copiados ou compilados de alguns livros e em troca forneciam pontos. Achamos
uma afronta!
Logo na terceira semana iniciou as aulas práticas de anatomia, vimos um corpo e diversos estudantes tirando fotos de forma
grosseira, dando risadas, fazendo gestos, sendo que estas fotos foram tiradas na presença de professores e mais tarde postadas
na internet como troféu. Ética e respeito não são trabalhados em sala e nem mesmo em casa por esses alunos. Só para enfatizar,
somente nesta faculdade há 6 mil estudantes de medicina neste ano de 2012.
Cada dia era um dia de frustação e preocupação, e quando iriamos dividir essas angustias com alguns brasileiros que ali
estavam, tínhamos a impressão de que para eles era normal e até bom. Muitos ficavam felizes quando não tinha aula ou quando
o professor é "gente boa", aquele que não se preocupa tanto e que não reprova. Percebemos a falta de conhecimento de grande
parte dos brasileiros estudantes, muitos têm pouca habilidade com a própria língua nativa e com as matérias do ensino médio
(as primeiras aulas do curso de medicina foram de coisas simples como "mitose e meiose", no entanto, não sei se os cursos
no Brasil também iniciam-se assim.)
Nós que éramos alunos iniciantes já tínhamos projetos de extensão às comunidades, aferir pressão e aplicar injeções (até
mesmo em crianças). Contudo, não chegamos a realizar tais tarefas devido ao retorno para o Brasil e por acharmos que não tínhamos
preparo e competência para tanto.
Bem, são vários outros detalhes, no entanto, sem me estender quero dizer que eu e minha irmã voltamos para o Brasil dia
31 de março (um mês depois) com um medo terrível e com uma indagação: "Será que os estudantes saem preparados para exercerem
medicina?".
No entanto, podem estar perguntando o que nos motivou a sair do Brasil para estudar medicina. Todos sabem que o curso
de medicina ainda é elitizado, e por essa razão o acesso a ele é difícil e caro, nós que somos de família em vulnerabilidade
social temos pouquíssimas chances, porem resolvemos arriscar a essa chance e retornamos, iremos iniciar os estudos e tentarmos
aqui, um outro porem é o fies, ele não seria problema se não exigisse um fiador que ganhe no mínimo duas vezes o valor do
curso. Reflita! Família pobre tem familiares ou amigos que ganhe uns R$ 6.000? Difícil né!
Concluo dizendo que concordo com o processo de revalidação e que o Brasil realmente tem que fiscalizar, pois são vidas
que estão em jogo."
Atenciosamente
Claudia da Silva*
*Nome fictício