29/12/2009
Crise do meio: estudantes têm pouca qualidade de vida
Pesquisa realizada com 800 acadêmicos de 75 Escolas Médicas do país aponta o 3.º e 4º anos como momento de crise durante
o curso, notado principalmente no sexo feminino.
Má alimentação, poucas horas de sono e estresse. Uma pesquisa realizada com 800 estudantes de 75 Escolas Médicas brasileiras,
públicas e privadas, matriculados entre o primeiro e sexto anos, apontou resultado inquietante. A percepção que os acadêmicos
do 3.º e 4.º anos têm de sua qualidade de vida no curso é ruim. É a chamada "crise do meio". Na autoavaliação, os terceiros
e quartanistas, especialmente acadêmicos do sexo feminino, atribuíram nota inferior à média geral. O grupo também apresentou
os piores escores nos domínios psicológicos e relações sociais e, ainda, problemas patológicos de sonolência diurna.
Avaliar a qualidade de vida do estudante de Medicina e a influência exercida na formação acadêmica, refletir sobre os
resultados e propor mudanças. Estes foram os principais objetivos da tese de doutorado da coordenadora-adjunta do curso de
Medicina da Faculdade Evangélica do Paraná (FEPAR) e integrante da diretoria da Associação Brasileira de Educação Médica (ABEM),
Prof.ª Dr.ª Patrícia Tempski Fiedler.
Situação de risco
A pesquisa aponta muitos estudantes (48,1%) com altos escores de sonolência diurna, sendo que a porcentagem de estudantes
do sexo feminino (54,9%) foi maior do que no sexo masculino (42,5%). Na percepção dos acadêmicos, o problema de excesso de
sono está associado à queda de domínio físico, psicológico e ambiental. Entretanto, 37% dos que possuem índices patológicos
elevados não estão conscientes de seu estado. Para a médica, que é mestre em Biologia Celular e Molecular pela UFPR e concluiu
o doutorado em Ciências pela USP, este comportamento, de se autoavaliar como satisfeito ou muito satisfeito, é considerado
de risco. "Eles não se enxergam como debilitados", ressalta.
O estudo mostra ainda que a cobrança nos estudos e o choque com a dura rotina no hospital levam estudantes de Medicina
a apresentarem sintomas patológicos. "O jovem que faz vestibular para Medicina sabe que enfrentará muitos anos de estudos.
Entretanto, no início do curso, a emoção que prevalece é o orgulho de ter passado na seleção e o sentimento de autorrealização.
Por isso, quando ele se depara com a rotina da universidade, tem a chamada crise do meio", explica. Em sua tese, a médica
notou que o curso de Medicina é marcado por inúmeros fatores geradores de estresse que podem influenciar na qualidade de vida
do estudante, exigindo dele adaptação e mudança de estilo de vida. "Muitas vezes ele adapta sua rotina de forma a não se alimentar
bem, não dormir direito e não fazer atividade física", complementa.
A falta de tempo livre para estudo, lazer, relacionamentos e repouso foi expressa como um dos principais fatores de diminuição
da qualidade de vida no curso. "São 45,4% de estudantes insatisfeitos com o curso e afirmam não aproveitar a vida como poderiam",
diz, destacando que são comuns os sentimentos de tristeza e desânimo, insatisfação com a vida afetiva e sexual, principalmente
nas mulheres e entre os terceiro e quartanistas.
Os estudantes de Medicina afirmaram que ter supervisão em atividades práticas, participar de projetos de desenvolvimento
social, boas aulas, professores com didática e o contato com o paciente melhoram a qualidade de vida no curso. "Neste sentido,
os estudantes do 5.º e 6.º anos têm melhor relação com os professores, enxergam o curso como muito competitivo e apresentaram
melhores escores no domínio de relação social", completa.
Formação médica - Escolas criam mecanismos para acadêmicos superar dificuldades
Desde que iniciou a pesquisa, em 2004, a médica percebeu melhora nas instituições e notou repercussão muito positiva do
estudo, que foi realizado não apenas com estudantes, mas também com residentes e médicos. "Melhorar a qualidade de vida no
curso de Medicina depende de medidas como ensinar o estudante a valorizar a vida, cuidar de sua saúde física e mental, estabelecer
e manter relacionamentos e desenvolver resiliência", afirma. Patrícia Tempski acredita que, além disso, devem ser tomadas
medidas institucionais por parte das escolas médicas, como desenvolvimento docente e supervisão em atividades práticas.
A ABEM criou uma Comissão de Apoio e Suporte ao Estudante de Medicina e Médico Residente e o número de faculdades que
possuem estes serviços vem crescendo. Em Cascavel, na Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), está sendo feito
planejamento para que em 2011 seja implantado o Núcleo de Apoio para o Curso de Medicina. É o que afirma o coordenador do
curso de Medicina e Diretor Regional da Delegacia do CRM em Cascavel, Marcos Menezes Freitas de Campos. "Nossa intenção é
dar suporte aos estudantes e promover debates sobre bioética e bem-estar", explica.
Apoio da família
Na Universidade Federal do Paraná, os estudantes possuem disciplinas profissionalizantes que visam não apenas a formação
médica, mas a formação do cidadão profissional de saúde. A coordenadora do curso de Medicina da UFPR, Prof.ª Dr.ª Claudete
Reggiani, informa que já no primeiro período são oferecidas disciplinas sobre saúde reprodutiva e sexual e detecção precoce
de drogas de abuso. "Muitos alunos entram no curso aos 17 anos e passam a ser referência em suas famílias. Se alguém fica
doente, ele já é solicitado como médico", explica. Por isso, a coordenadora faz reunião com os pais para apresentar as dificuldades
e responsabilidades de um estudante de Medicina e solicitar apoio da família.
Os acadêmicos do 4.º período possuem disciplinas sobre Saúde Mental do Médico, coordenada pelo Departamento de Psiquiatria,
e Qualidade de Vida do Médico, com aulas multidisciplinares sobre nutrição, educação física, espiritualidade e sexualidade
humana. Além disso, existem as disciplinas de Ética e Bioética e há um setor que dá suporte a todos os acadêmicos da universidade.
Acompanhamento emocional e físico
Na Universidade Estadual de Londrina, existe há 12 anos a Comissão de Apoio Docente-Dicente (CADD), formada por psicólogos,
professores e estudantes de todas as séries, que tem o objetivo de acolher e apoiar os colegas que necessitam de acompanhamento
emocional e físico. De acordo com a coordenadora do Colegiado de Medicina da UEL, Dr.ª Prof.ª Evelin Massae Ogatta Muraguchi,
o CADD funciona como programa de formação complementar na Escola de Medicina.
A Faculdade Evangélica do Paraná (FEPAR) criou, em 2002, o Grupo de Acompanhamento Multiprofissional ao Aluno (GAMA),
que atende cerca de três mil estudantes por ano, oriundos de oito cursos da Faculdade. Medicina é a segunda graduação com
maior demanda de atendimento na instituição. Grande parte dos futuros médicos busca auxílio para se adaptar às exigências
curriculares, aprender a administrar melhor o tempo, lidar com frustrações, transtornos de humor e a alta competitividade.
A distância da família e da cidade de origem também faz parte dos motivos que levam os alunos a frequentar o GAMA. Na FEPAR,
cerca de 50% dos estudantes de Medicina são de outros estados. "Os hábitos regionais, o clima, o ambiente da faculdade, o
contato com pessoas estranhas e estar longe dos familiares é um desafio para eles", conta a pedagoga e coordenadora do GAMA,
Sirlei Terezinha Bittencourt.
Na Universidade Positivo, qualidade de vida é uma das disciplinas do curso de Medicina. Os alunos também participam de
projetos de extensão que buscam amenizar o estresse com atividades culturais e de aprimoramento da relação médico-paciente.
"Criamos esse ano um Grupo de Estudos de Aprendizado, no qual os estudantes têm espaço para debater sobre avaliações e dificuldades
no aprendizado", explica o coordenador do curso, Dr. Ipojucan Calixto Fraiz. Na instituição, o internato não ocorre durante
a madrugada para evitar a sobrecarga dos estudantes. Paralelo ao trabalho realizado pelo curso de Medicina, a UP conta com
uma Central de Carreiras. O espaço é aberto aos estudantes de todas as áreas e oferece orientação psicológica e pedagógica.
Em Maringá, existe um ambulatório central que faz a triagem de todos os alunos da universidade e direciona os acadêmicos
de Medicina para atendimento no Núcleo de Ensino e Atendimento ao Aluno de Graduação e Residência Médica (Nepagrem). O coordenador
da Comissão de Residência Médica (Coreme) da Universidade Estadual de Maringá (UEM), Prof. Dr. Mauro Porcu, explica que o
atendimento é feito por residentes de psiquiatria e que o Nepagrem existe desde 2001 com o objetivo de dar suporte psicológico
e social ao aluno. "Ao ingressar na universidade, o estudante recebe da Pró-Reitoria de Ensino um livreto com dicas de apoio
médico, odontológico, psicológico e acadêmico", afirma.
Nas demais universidades, o suporte aos estudantes de Medicina é feito através de projetos de apoio psicológico e educacional,
que os auxiliam a encarar conflitos e dificuldades que possam surgir no decorrer do curso. Para o segundo secretário e membro
da Comissão de Ensino Médico do CRMPR, Sérgio Maciel Molteni, o esforço das instituições de ensino em desenvolver estratégias
de melhoria da qualidade de vida do estudante é essencial para garantir a melhor formação dos futuros médicos. "Transformar
a Educação Médica deve ser objetivo tanto dos discentes quanto de docentes", afirma.
Orientação há 23 anos
A Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) fundou há 23 anos o Grupo de Assistência Psicológica ao Aluno
da Faculdade de Medicina (GRAPAL). A equipe do GRAPAL é formada por profissionais das áreas de psiquiatria e psicologia que
atendem hoje não só alunos de Medicina, mas dos cursos de Fisioterapia, Fonoaudiologia, Terapia Ocupacional, além de médicos
Residentes do Hospital das Clínicas de São Paulo.
Os transtornos de humor, episódios depressivos, seguidos pelos transtornos depressivos recorrentes, transtornos distímicos
e transtornos bipolar são motivos predominantes para o agendamento de consultas. Os transtornos de ansiedade, muitos ligados
à intensa competição existente entre os alunos, também são comuns. Balanço do GRAPAL mostra que já foram realizados mais de
15 mil atendimentos, incluindo consultas psiquiátricas, sessões de psicoterapia, orientação familiar e grupos de reflexão
sobre identidade médica e relação médico-paciente.
Referência
O inventário de avaliação da qualidade de vida no curso de medicina (IQVEM), criado na tese de Patrícia Tempski como instrumento
de avaliação da Medicina, está sendo adaptado em outras áreas de saúde, servindo de referência para universidades brasileiras
e até mesmo no exterior. "Fomos procurados por professores da África do Sul e de Londres, pois o IQVEM apresenta questões
não só sobre qualidade de vida, mas também uma visão ampla do ambiente de ensino", explica.