07/07/2017
Keti Stylianos Patsis
O artigo 169 da Consolidação das Leis do Trabalho prescreve ser obrigatória a notificação das doenças profissionais e daquelas produzidas em virtude de condições especiais de trabalho, comprovadas ou objeto de suspeita, de conformidade com as instruções expedidas pelo Ministério do Trabalho. Por sua vez, o artigo 269 do Código Penal caracteriza como crime “deixar o médico de denunciar à autoridade pública doença cuja notificação é compulsória”, com previsão das penas de detenção (de seis meses a dois anos) e multa.
Portanto, a ausência de comunicação de acidente de trabalho e de doença ocupacional sujeita o médico à ação penal. Diante da gravidade desta ameaça, defende-se o direito o médico de usar dados do prontuário para demonstrar que não se trata de doença ocupacional ou acidente de trabalho o que ocorreu com o trabalhador.
Justifica-se este entendimento, pois em relação à confidencialidade das informações médicas, o Código de Ética Médica estabelece que o profissional guardará sigilo a respeito das informações de que detenha conhecimento no desempenho de suas funções, com exceção dos casos previstos em lei (artigo XI dos princípios fundamentais).
No capítulo IX, o ordenamento ético estabelece ser vedado ao médico: (art. 73) revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente; (art. 76), revelar informações confidenciais obtidas quando do exame médico de trabalhadores, inclusive por exigência dos dirigentes de empresas ou de instituições, salvo se o silêncio puser em risco a saúde dos empregados ou da comunidade; e (art. 89) liberar cópias do prontuário sob sua guarda, salvo quando autorizado, por escrito, pelo paciente, para atender ordem judicial ou para a sua própria defesa.
Assim, não há quebra de sigilo quando o médico que atende o trabalhador usar dados do prontuário de seus pacientes para justificar o não reconhecimento de nexo entre trabalho e doença, uma vez que isto vai embasar a não emissão da Comunicação de Acidente de Trabalho.
No Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), há três maneiras de estabelecer nexo entre trabalho e doenças: com a Comunicação de Acidente de Trabalho; pelo anexo II do Decreto 3048/99, que relaciona os agentes patogênicos causadores de doenças profissionais ou do trabalho, conforme previsto no artigo 20 da Lei 8.213 de 1991; e pelo Nexo Técnico Epidemiológico Previdenciário (NTEP), que é o resultado do cruzamento das tabelas da Classificação Internacional de Doenças (CID) com a da Classificação Nacional de Atividade Econômica (CNAE). Neste caso, o nexo entre doença e trabalho é estabelecido estatisticamente, quando a incidência de determinada doença tiver sido maior num grupo de trabalhadores, do que em outros, em determinado período de tempo.
Ocorre que a metodologia do NTEP é falha e considera a correlação de duas variáveis (CID e CNAE) como se fosse obrigatória a relação de causa e efeito entre elas, o que não é verdade!
Este equívoco é maior ainda pelo fato de o NTEP relacionar duas variáveis apenas pelo fato de uma doença ter aparecido em determinado grupo de trabalhadores em frequência maior do que em outros, não levando em conta fatores como idade, gênero, histórico familiar etc, permitindo que nexos causais sejam estabelecidos. São exemplos a caracterização de diabetes mellitus como doença causada ou agravada por fatores presentes no trabalho de pessoas que trabalham em empresas de captação, tratamento e distribuição de água; ou de alcoolismo, como doença ocupacional, em trabalhadores de empresas de locação de mão de obra.
Justamente pelo fato de existir a possibilidade de equívoco no estabelecimento do NTEP, existe a previsão de o mesmo ser contestado quando houver elementos para tanto. Necessário frisar que tais contestações serão avaliadas, exclusivamente, pela perícia médica do INSS.
Ressalta-se que a prática adequada da Medicina do Trabalho impõe ao médico a necessidade de conhecer os locais de trabalho e os riscos ocupacionais existentes nas atividades de seus pacientes.
O Código de Ética Médica garante a autonomia médica ao prescrever em seu Capítulo I, item VIII, que “o médico não pode, em nenhuma circunstância ou sob nenhum pretexto, renunciar à sua liberdade profissional, nem permitir quaisquer restrições ou imposições que possam prejudicar a eficiência e a correção de seu trabalho”. Isto garante ao médico o direito de não contestar nexos que lhe pareçam existentes.
Desde que baseado em justos motivos, se o médico do trabalho entender que o nexo estabelecido entre doença e trabalho pela perícia médica do INSS não corresponder à realidade, ele está autorizado a usar os elementos do prontuário médico para contestá-lo. Tal autorização se ampara em dois motivos principais: a avaliação da contestação é realizada exclusivamente pelo perito médico no INSS, que também tem a obrigação de guardar sigilo sobre as informações do prontuário médico; as falhas existentes no NTEP levam ao estabelecimento de nexos bizarros, que devem ser corrigidos e, muitas vezes, os fatos anotados no prontuário médico são os que mais facilmente podem levar a esta necessária correção.
A apresentação de dados do prontuário não substitui a avaliação de outros dados, inclusive dos não confidenciais, mas pode complementar e aperfeiçoar a análise.
Keti Stylianos Patsis é especialista em Medicina do Trabalho, Reumatologia, Medicina Legal e Perícia Médica. Foi presidente da Associação Paranaense de Medicina do Trabalho e diretora da Associação Nacional de Medicina do Trabalho e Associação Nacional dos Médicos Peritos da Previdência Social. É conselheira e coordenadora da Câmara Técnica de Medicina do Trabalho do CRM-PR, integra também a Câmara Técnica de Medicina do Trabalho do CFM.
*As opiniões emitidas nos artigos desta seção são de inteira responsabilidade de seus autores e não expressam, necessariamente, o entendimento do CRM-PR.